Funk tipo exportação

Enquanto ainda enfrenta preconceito em seu próprio país, funk faz 30 anos e é abraçado pelos gringos em 2019

Leonardo Oliveira e Renata Nogueira Do UOL, em São Paulo Divulgação

2019 foi um ano marcante para o funk brasileiro. Ao mesmo tempo que celebrou seu aniversário de 30 anos, o ritmo nascido nas favelas teve seus artistas cada vez mais notados pelos grandes nomes da indústria mundial. Seja no topo das paradas musicais ou nas vitrines dos festivais, como o Lollapalooza e o Rock in Rio, as batidas aceleradas grudaram na mente dos gringos. Uma retrospectiva dos últimos 12 meses mostra que se unir ao nosso funk é que há de mais quente.

Ainda assim, o ritmo seguiu enfrentando preconceito dentro de seu próprio país. No começo de dezembro, a repressão da PM a um baile funk na favela de Paraisópolis, em São Paulo, deixou nove jovens mortos. Já Rennan da Penha, criador do Baile da Gaiola, ficou preso entre abril e novembro por associação ao tráfico. Enquanto esteve na cadeia, foi indicado ao Grammy Latino e premiado com canção do ano no Prêmio Multishow. Fora da prisão, o DJ, que se diz inocente e vítima de preconceito, já tem uma parceria engatilhada com Anitta e foi convidado por Ludmilla para produzir a música dela com a americana Cardi B.

Segundo dados levantados em setembro pelo Spotify, os Estados Unidos já são o segundo país que mais ouve funk no mundo dentro do serviço de streaming. Do baile de favela —ainda perseguido por autoridades— ao maior mercado da indústria fonográfica, o funk brasileiro tem tudo para se firmar como uma tendência global.

Divulgação

Essa história aconteceu com o samba: a partir do momento em que virou business, o gênero começou a ser respeitado. O funk está se impondo goela abaixo, pelos números que faz, porque agora a garotada não depende mais de gravadora para fazer sucesso, eles gravam em casa e o negócio anda sozinho. O mundo está tendo noção de tanta gente boa fazendo funk. É natural por parte do artistas gringos buscar parcerias. O funk ainda vai enfrentar resistência, mas os números e o poder vão ser maiores

Sany Pitbull, DJ e produtor de funk

Anitta

Embaixadora do funk pelo mundo, Anitta nunca fez tantas conexões internacionais como em 2019, ao mesmo tempo em que ousou terminar o ano com um projeto 100% em português. Com Brasileirinha, ela celebra o que os gringos passaram a olhar como ouro. Só neste ano, a cantora foi parar no álbum de Madonna e ainda gravou com Snoop Dogg, Major Lazer, DJ Snake, Black Eyed Peas, Cardi B...

Hoje o ritmo cresce muito e se expande rompendo fronteiras - quem é antenado acaba ouvindo, curtindo e se interessando pelo funk

Anitta sabe do que está falando. A cantora, que costuma mostrar suas playlists de funk para os artistas e produtores gringos que conhece mundo afora, vê o movimento de valorização do funk como algo natural. Foi dessa forma, por exemplo, que o rapper canadense Drake descobriu Kevin O Chris durante o Rock in Rio e regravou em tempo recorde Ela É do Tipo, um dos hits do funkeiro carioca, que já havia dividido o palco com Post Malone no Lollapalooza deste ano.

"Eu tenho várias playlists, principalmente de funk. Elas são a trilha sonora das festas lá em casa e de vários momentos da minha vida. Adoro quando amigos, gringos ou brasileiros, e até mesmo os fãs usam essas playlists no dia a dia para se atualizar. Elas surgiram despretensiosamente da minha vontade de me organizar mesmo, mas eu fico muito feliz quando acabam sendo um trampolim para outros artistas", conta Anitta, em entrevista ao UOL.

Reprodução/YouTube

Não tem preço ver o nosso ritmo, o funk, ganhar o coração do mundo

Anitta

Ludmilla

Não dá para pensar no funk em 2019 sem falar de Ludmilla. No ano mais produtivo de sua carreira, a cria de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, deu o seu "hello" para o mundo com um DVD e rapidamente colheu os frutos.

Depois de embalar o desfile da marca de Rihanna com Malokera e lançar Onda Diferente com Anitta e Snoop Dogg, a cantora tem um sério candidato a hit do verão nas mãos: Verdinha. A música tem produção gringa, em uma parceria com Walshy Fire, DJ jamaicano do Major Lazer, e Topo La Maskara, dominicano que já tinha gravado com MC Fióti.

Para Ludmilla, no entanto, a visibilidade internacional do funk brasileiro já estava sendo construída há bastante tempo, e 2019 foi apenas o ano da colheita.

Não acho que seja algo de agora. A galera está lutando, trabalhando, mostrando sua arte para as pessoas e ralando por espaço já faz muito tempo. Que bom que estamos colhendo os frutos de tanto suor e esforço.

Assim como Anitta, a cantora também fecha o ano com uma faixa pronta (e ainda inédita) com a rapper americana Cardi B, que depois de rebolar a raba ao som de funk brasileiro também quis trabalhar com ela. "Sempre fui fã da Cardi, ela é muito gente boa e muito talentosa, e é apaixonada pelo funk brasileiro. Nos divertimos demais", resume Lud sobre o que vem por aí.

Reprodução/YouTube

Que a gente ganhe cada vez mais espaço e domine este mundão

Ludmilla

Reprodução/Instagram

Kevin O Chris

O americano Post Malone, o cantor mais ouvido do ano no mundo e o terceiro mais ouvido da década no Spotify, cedeu espaço em sua estreia no Brasil e fez Kevin O Chris botar o Lollapalooza na gaiola.

Meses depois, o canadense Drake —ele, sim, o artista mais ouvido da década— liberou sua própria versão de Ela É Do Tipo, cantando em inglês e arranhando o português.

Foi incrível ouvir o Drake cantando em português, principalmente quando ele canta o 'vai Rebola Pro Pai'...

Representante do funk 150 bpm, vertente mais acelerada do gênero, Kevin O Chris, por sua vez, perfurou o paredão sertanejo e, ao lado de Anitta, entrou no top 5 de artistas brasileiros mais ouvidos no streaming. É dele também a terceira posição de artista masculino mais ouvido do ano.

Depois de tantas conquistas, o funkeiro está com a moral lá em cima. Se já era um dos nomes mais disputados para parcerias no Brasil, se agigantou depois da visibilidade mundial conquistada com Drake. Mas o que Kevin O Chris fez para chamar a atenção do rei do streaming?

A gente tem uma pegada de novidade, o som tem várias referências musicais, o funk é tipo universal, tá ligado?!

Fernanda Tiné/UOL

MC Zaac

MC Zaac brilhou ao lado de Anitta em Vai Malandra e se juntou com a poderosa e com o colombiano J Balvin em Bola Rebola, no início de 2019. Depois do funk transpassar as barreiras do Rock in Rio —onde ganhou um show em homenagem aos 30 anos, com direito a orquestra e tudo— e do Lollapalooza, foi ele quem levou o ritmo para outro festival: o superindie Popload.

O funkeiro aceitou o convite para cantar com Tove Lo, já que é um dos parceiros musicais da cantora pop sueca em Sunshine Kitty, seu disco mais recente. "Música não tem fronteiras, é para todos, porque o que mais importa é o sentimento que ela passa. A Tove Lo é querida e adorou nosso funk viu?! Foi uma mistura incrível cantar com ela", resume.

Acho que o que mais atrai os gringos é a nossa verdade, alegria cantando funk e a nossa batida envolvente. É um gênero, um movimento cultural muito forte, que traz nossa essência, nossa força e luta à tona.

Três anos depois de estourar com Bumbum Granada, Zaac acredita que ainda tem muito a conquistar. "Já conseguimos quebrar muitas barreiras e não vamos parar. O funk é do mundo, para todos, não importa classe social, gênero, raça."

Literalmente na moda

Para além de parcerias com artistas gringos, em 2019 o funk conquistou até as marcas mais badaladas

Reprodução/YouTube

Chanel

Na trilha sonora do comercial de Natal de seu perfume mais famoso, o Nº 5, a Chanel usou da batida brasileiríssima. E essa foi uma reincidência: no começo de 2019, a grife francesa já havia usado o ritmo brasileiro para embalar a campanha do perfume Chance. Na ocasião, a faixa escolhida foi um remix de Sam Spiegel e Tropkillaz para Perfect com participação de BIA e MC Pikachu.

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Reprodução/Twitter

Calvin Klein

A Calvin Klein, já cantada em Bigodin Finin, do MC Th, retribuiu todo o amor do funk num comercial de sua divisão de jeans. O filme, com batidão ao fundo, é estrelado por Kang Daniel, astro do K-Pop, numa clara salada de referências - e que funcionou muito bem, obrigado.

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Ben Gabbe/Getty Images for Savage X Fenty

Savage x Fenty

Enquanto não brinda os fãs com um novo disco, Rihanna louva o funk. Malokera, de MC Lan com Ludmilla e os gringos Ty Dolla $ign, Skrillex e TroyBoi, foi trilha sonora do desfile da marca Savage x Fenty, da cantora barbadiana, durante a NYFW, a semana de moda de Nova York, em setembro. O evento foi tão badalado que está disponível para streaming no Prime Video, da Amazon.

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Reprodução/Instagram

Funk também no streaming

Em 2019, a quebrada também ganhou seu espaço no streaming de vídeo. Sintonia, série criada pelo midas do funk Kondzilla, chegou em agosto na Netflix simultaneamente para os mais de 190 países atendidos pelo serviço de streaming. A princípio, a crítica gringa estranhou aquela realidade tão colorida e distante, mas depois curtiu a história dos amigos MC Doni, Rita e Nando. Na trama, Doni nutre o sonho de se tornar um funkeiro famoso —e é vivido justamente por uma das apostas de Kond na música: MC Jottapê.

A realidade dos bairros periféricos aliada às facilidades e obstáculos na construção do sonho de ser uma estrela fascinou brasileiros e gringos. "Sintonia é a série brasileira da Netflix que você deveria começar a assistir o quanto antes", classificou o site mexicano Chilango.com.

A Variety foi mais contida, mas não deixou de elogiar a iniciativa até então inédita de atrair a audiência do público do funk para um serviço elitizado. "A série pode ser vista como um teste para a Netflix avaliar sua própria capacidade de aumentar sua audiência de fora dos Estados Unidos em uma fatia específica: a de jovens adultos", avaliou a revista americana.

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