Um Oscar histórico

Pela 1ª vez, a Academia deu o maior prêmio a um filme internacional: o sul-coreano 'Parasita', de Bong Joon Ho

Beatriz Amendola e Liv Brandão Do UOL, em São Paulo ERIC GAILLARD/Reuters

A chuva atípica que caiu sobre Los Angeles e quase provocou uma enxurrada no Dolby Theatre, a tradicional casa do Oscar, já era um prenúncio de que algo seria diferente na 92ª edição do prêmio mais aclamado do cinema. Mas neste ano em especial ela também evocava um momento icônico de um dos principais indicados da noite, o sul-coreano "Parasita", em que uma família deixava a mansão de seus patrões e seguia para sua casa de verdade, na periferia, inundada após uma tempestade.

Se a chuva era um sinal do acaso, não sabemos. Mas foi uma coincidência feliz: O filme de Bong Joon Ho fez história se tornou o primeiro longa estrangeiro a ser premiado na categoria de melhor filme do Oscar.

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Vitória surpreendente

Antes de Jane Fonda ler o nome de "Parasita" no envelope mais cobiçado da noite, o filme já havia conquistado uma quantidade respeitável de prêmios. Foram três, nas categorias de roteiro original, filme internacional e direção —na qual Bong Joon Ho enfrentou nomes consagrados de Hollywood como Martin Scorsese e Quentin Tarantino.

A categoria de melhor filme, no entanto, permanecia uma incógnita. A Academia, afinal, já havia tido uma chance de fazer história em 2019, com "Roma", filme de Alfonso Cuarón totalmente falado em espanhol. A opção, na ocasião, foi pelo seguro "Green Book - O Guia", e era esperado que isso se repetisse neste ano, com um prêmio que parecia certo para "1917", o filme de guerra de Sam Mendes.

Daí a surpresa quando "Parasita" foi anunciado como melhor filme, sendo aplaudido de pé por famosos e trabalhadores da indústria. Foi a cereja no bolo de uma trajetória de sucesso que começou em maio, quando o longa levou para casa a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Uma produção não era reconhecida pelas duas premiações desde 1956, quando "Marty" conseguiu o feito com sua história de um açougueiro que tentava encontrar o amor.

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Bong Joon Ho, melhor pessoa

Os prêmios que "Parasita" acumulou no Oscar serviram para colocar em evidência o diretor, produtor e roteirista Bong Joon Ho, que saiu como uma das figuras mais carismáticas da noite. O cineasta, que fez a maior parte de seus discursos em coreano, caiu nas graças da web ao olhar, encantado, para o seu primeiro careca dourado.

Depois, ao ganhar o prêmio de melhor diretor, Bong deu um show de fofura ao homenagear os colegas indicados. "Quando eu era jovem e estudava cinema, dizia-se que 'o que é mais pessoal, é mais criativo'. Essa citação é do Martin Scorsese", disse ele, sendo imediatamente interrompido por uma salva de aplausos para o diretor de "O Irlandês", que ficou de pé e agradeceu, emocionado.

Quando eu estava na universidade, eu estudei os filmes de Martin Scorsese. Só de ser indicado é uma honra, nunca achei que fosse ganhar.

Depois, ele voltou suas atenções a Tarantino. "Quando as pessoas aqui nos Estados Unidos não conheciam o meu trabalho, Quentin sempre colocava meus filmes na lista dele, muito obrigado. Quentin, eu amo você".

O cineasta disse então que, se a Academia permitisse "iria pegar uma serra, cortar esse Oscar e dividir com todos vocês", citando ainda Sam Mendes e Todd Philips.

Ele encerrou bem-humorado. "Vou beber até amanhã de manhã" —uma promessa que ele já havia feito ao ganhar o prêmio de filme internacional (e que ninguém vai julgá-lo por cumprir).

Choveu no molhado

No restante das categorias da noite, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fez jus ao clima em Los Angeles no último domingo e choveu no molhado — assim como o temporal que encharcou o tapete vermelho e obrigou a produção a usar rodos nada glamourosos.

Mas, voltando às estatuetas douradas? Foi fácil prever os vencedores nas categorias de atuação e arrasar nos bolões da vida. Renée Zellweger foi a melhor atriz por "Judy: Muito Além das Estrelas", Joaquin Phoenix levou a estatueta de melhor ator por "Coringa", Brad Pitt venceu como melhor ator coajuvante por "Era Uma Vez em... Hollywood" e Laura Dern faturou na categoria atriz coadjuvante por "História de um Casamento".

Um Coringa Emocionado

Ao subir ao palco, Phoenix fez (mais um) um poderoso discurso. O astro, que ganhou os principais prêmios da temporada, falou sobre lutas sociais, e se emocionou ao lembrar o irmão, o também ator River Phoenix, morto em 1993, aos 23 anos. "Quando estamos falando sobre desigualdades e racismo, estamos falando da luta contra a injustiça, a luta contra a noção de que um povo, uma nação, uma raça, um gênero, ou uma espécie tem o poder de dominar a outra", afirmou.

Ele então falou sobre o apoio que recebeu da classe artística e citou o irmão, River Phoenix, momento no qual se emocionou.

Fui difícil de trabalhar e todos vocês aqui me deram uma segunda chance. Isso é o melhor do nosso mundo, quando nos ajudamos, e estendemos a mão. Isso pé o melhor da humanidade. Quando ele tinha 17 anos, meu irmão disse uma coisa: 'Corra com amor, e a paz virá

Mike Blake/Reuters
Mike Blake/Reuters Mike Blake/Reuters

Não foi dessa vez

Em 2020, o Brasil foi representado no Oscar por "Democracia em Vertigem". O polêmico filme dirigido pela mineira Petra Costa concorreu na categoria melhor documentário, mas acabou perdendo para "Indústria Americana", primeira iniciativa da Higher Ground, produtora do casal Obama. Narrado em primeira pessoa, "Democracia em Vertigem" é um retrato extremamente pessoal do processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff do poder. Costa, que é neta de um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez —implicada durante a Lava-Jato— e filha de militantes contra a ditadura, usa sua trajetória para costurar o filme, lançado pela Netflix.

Em seu Twitter, a cineasta, que desfilou pelo tapete vermelho do Dolby Theatre com um vestido longo da mesma cor —símbolo do Partido dos Trabalhadores— citou o discurso da vencedora Julia Reichert, codiretora de "Indústria Americana". "Que os trabalhadores do mundo possam se unir, como disseram Karl e Julia Reichert, de 'Indústria Americana', escreveu.

Ela também alfinetou o presidente da República, Jair Bolsonaro, que fez campanha contra seu filme. "Em 2016, Bolsonaro disse que cortaria fundos para as artes já que os filmes brasileiros nunca chegam aos Oscars. Aqui está o meu presente para o Presidente do Brasil", ironizou.

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Militância nos looks

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A política, desta vez, não apareceu tanto na premiação, mas veio forte no tapete vermelho, onde as estrelas usaram seus looks para defender suas causas. Petra Costa e seu vestido vermelho-PT ganharam a companhia de atrizes como Natalie Portman, dona do visual mais comentado da noite.

Dois anos após criticar a falta de diretoras no Globo de Ouro, a atriz foi ao Oscar com uma capa onde estavam bordados os nomes de diretoras esnobadas pela premiação: Lorene Scarfaria ("As Golpistas"), Lulu Wang ("A Despedida"), Greta Gerwig ("Adoráveis Mulheres"), Mati Diop (Atlantique), Marielle Heller ("Um Lindo Dia na Vizinhança"), Melina Matsoukas ("Queen & Slim"), Alma Har'el ("Honey Boy") e Céline Sciamma ("Retrato de uma Jovem em Chamas").

Eu queria reconhecer as mulheres que foram ignoradas pelos seus trabalhos incríveis esse ano

O ator Billy Porter, por sua vez, quis subverter as noções de realeza com um vestido inspirado pelo Palácio de Kensington e feito sob medida pelo estilista Giles Deacon. "Literalmente embalar o Sr. Porter, um homem negro e queer, em realeza, é mudar as percepções sobre quem pode ser realeza", escreveu o jornal The New York Times.

Já estrelas como Saoirse Ronan e Kate Denver optaram por roupas feitas de forma sustentável. Saoirse, que perdeu o prêmio de melhor atriz para Renée Zellwegger, usou um vestido Gucci confeccionado com os restos de tecido do vestido que havia usado no Bafta.

Fora isso, houve pouco espaço para declarações politizadas na cerimônia. Chris Rock e Steve Martin alfinetaram a falta de mulheres e diretoras e de atores negros. "Lá em 1929, não havia atores negros indicados", disse Steve. "Agora, em 2020, nós temos uma!", respondeu Chris, referindo-se a Cynthia Erivo ("Harriet").

O mais perto que se chegou de uma crítica política depois disso foi quando Oscar Isaac, de origem guatemalteca, e Salma Hayek, mexicana, entraram juntos no palco. A atriz brincou que era a primeira vez em que tocava em um Oscar. "É um Oscar não tão branco agora", brincou o colega.

Prometeram mais do que cumpriram

Quem prometeu muito e não cumpriu nesse Oscar foram "Coringa" e a Netflix. O longa de Todd Phillips, recordista de indicações, começou a noite concorrendo a 11 estatuetas e voltou para casa apenas com os troféus de melhor ator, para o excelente Joaquin Phoenix, e trilha sonora, para Hildur Guðnadóttir.

Já o gigante do streaming fez história ao conquistar 24 indicações para suas produções, como "O Irlandês", do veterano Martin Scorsese, e "Dois Papas", do brasileiro Fernando Meirelles. Para não dizer que ficou com as mãos abanando, a Netflix se viu representada por Laura Dern, melhor atriz coadjuvante por "História de um Casamento", e por documentário, com "Indústria Americana". Não foi dessa vez que a Academia se rendeu de vez ao "novo" meio de se consumir cinema.

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Os humilhados foram exaltados, mas nem tanto

O número de abertura da festa do cinema ficou a cargo da cantora e atriz Janelle Monáe. Em sua performance musical, ela exaltou artistas negros e queer como ela —embora apenas um artista negro tenha sido indicado formalmente este ano, Cynthia Erivo, por "Harriet— e louvou as "mulheres que dirigiram filmes fenomenais" —afinal, nenhuma diretora foi indicada este ano.

Acompanhada de Billy Porter e de muitos dançarinos, Janelle ainda fez referência a filmes esnobados: ela vestiu flores como as de Florence Pugh em "Midsommar", alguns dançarinos usaram o macacão vermelho de "Nós", de Jordan Peele, e outros usaram figurino à imagem e semelhança ao de Eddie Murphy em "Meu nome é Dolemite" ou de "Queen & Slim". Muito bonito na teoria, mas na prática esses filmes deveriam ter sido lembrados entre os concorrentes.

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