12/09/2008 - 17h34
Projeto da 28º Bienal de São Paulo pretende rever papel da Fundação; leia entrevista com o curador
JOSÉ BUENO DE SOUZA
Da Redação

"Um projeto de mão pesada" é como o curador Ivo Mesquita definiu, em entrevista ao UOL, a atuação da curadoria no desenvolvimento da 28ª Bienal de São Paulo que acontece de 26 de outubro a 6 de dezembro. Sob o tema "Em Vivo Contato", a exposição vai apresentar trabalhos de 45 artistas nacionais e internacionais e levantou grande polêmica ao incluir em sua proposta um andar inteiramente vazio no prédio da Bienal, no parque do Ibirapuera.

"É uma curadoria de mão pesada no sentido de que temos de ser firmes para que nossa idéia chegue ao público, e esse é o jeito de controlarmos isso. Assim consigo manter uma coerência da minha proposta", explicou Mesquita, que divide o desenvolvimento da 28ª Bienal com a curadora Ana Paula Cohen.

A proposta do vazio a que se refere o curador pretende estimular um processo de reflexão e de redefinição do papel da Fundação Bienal de São Paulo no cenário da arte brasileira.

Criada em 1951 com a intenção de formar o público e desenvolver o mercado de arte contemporânea no Brasil, a Bienal chega a esta 28ª edição sendo alvo de muitas críticas sobre seu modelo de exposição e sobre a gestão da fundação.

É justamente esse cenário que estimulou o desenvolvimento do projeto "Em Vivo Contato". Segundo o curador, a Bienal precisa passar por uma redefinição do seu papel. "Acho que a Bienal veio perdendo sua vocação e passa por uma crise. Trata-se de uma pergunta bastante básica: o que era São Paulo em 1951 e o que é São Paulo hoje? O tema, se é que há um, não tem a ver com a produção artística, mas trata da crise no sistema da arte. O vazio não se refere à produção artística. É um gesto de dissecamento", analisou.

"A Bienal de São Paulo tem um problema particular que é o edifício, ela está um pouco condenada a esse prédio de 30 mil metros quadrados. Parece haver sempre essa expectativa de que a Bienal só pode ser se encher este prédio inteiro. Entretanto a produção artística já propõe outras formas de expressão. Podem-se fazer coisas na cidade, contatos com outros museus, coisas no resto do Brasil. Por que tem que ser este prédio, algo pesado e rígido?", questionou o curador.

Com orçamento estabelecido em cerca de R$ 9 milhões, o projeto prevê, além do andar vazio, que o térreo torne-se uma praça de convivência aberta, que receberá performances e apresentações artísticas e que o terceiro andar seja transformado em uma espécie de arquivo público, em que os visitantes poderão conhecer parte do acervo da Fundação e ter acesso a catálogos de mais de 200 bienais que acontecem pelo mundo.

Muitos dos trabalhos que serão expostos são de desenvolvimento específico para esta Bienal e têm como fio condutor abordar questões relacionadas à memória e à documentação. A presença desse tema reflete-se justamente na proposta de rever o desenvolvimento da mostra desde sua criação e na reflexão sobre os rumos que ela deveria tomar no futuro. "Nossa idéia é que ao final da 28ª Bienal seja produzido um documento a ser encaminhado para a fundação com algumas sugestões e recomendações que nós do meio artístico brasileiro fazemos. A execução disso cabe à Fundação Bienal. Pretendemos tomar esta Bienal como um espaço de discussão e de sistematização dessas críticas e questões", explicou Mesquita.

Leia a seguir a íntegra da entrevista com o curador Ivo Mesquita, que diz que esta Bienal não terá um catálogo, mas um jornal semanal com nove números.

UOL - Como vem sendo desenvolvido o conceito do vazio e o que se pretende abordar com isso?
Ivo Mesquita - A idéia do vazio foi um pouco valorizada pela mídia, quando na verdade ela é bem mais simples. Não se trata de um tema, deixar um andar vazio é uma estratégia do projeto curatorial. O principio é que no meu entendimento esse é um gesto que deve ser feito neste momento por conta de uma série de circunstâncias em relação à instituição Fundação Bienal de São Paulo.

Acho que a Bienal precisa passar por um realinhamento de perspectiva. Seja em relação ao fenômeno das bienais como parte das estratégias culturais do mundo globalizado --são mais de 200 bienais pelo mundo--, seja em relação ao quadro de instituições culturais do país (museus e mercado), instituições muito mais profissionalizadas e com desempenho muito mais acurado e que cumprem o papel de apresentar exposições históricas, arte contemporânea.

Hoje também há o fator da descentralização com a Bienal do Mercosul, que é uma referência muito importante e que a Bienal de São Paulo tem que passar a considerar e se relacionar com ela.

O curioso é que a comparação do número de visitantes de 1951, na primeira Bienal, com o público de 2006, nota-se que essa quantidade é sempre em torno de 10% da população da cidade, o que é um fenômeno a ser investigado, pois cria-se uma infra-estrutura enorme e mantém a mesma proporção de público.

Parece-me oportuno pensar a Bienal de São Paulo em relação a esses fatores. O tema, se é que há um, não tem a ver com a produção artística, mas sobre uma crise no sistema da arte. O vazio não se refere à produção artística. Ao contrário, é da experiência do artista com essa consciência de um vazio que ele preenche que a gente toma como um gesto da curadoria, sem nenhuma pretensão artística. É um gesto de dissecamento.

UOL - Como essas circunstâncias foram se refletindo no papel da Bienal até que culminaram com esse gesto?
Mesquita - O que é a Bienal em relação ao MAM, ao MAC, ao CCBB, ao Instituto Tomie Ohtake, ao Passo das Artes e às 50 e tantas galerias que existem na cidade? Quando foi criada, ela tinha essa idéia de que estava formando o público, que estava ajudando a formar museus e o mercado. Mas e hoje? Esse papel já foi cumprido.

E em relação às mais de 200 bienais que existem pelo mundo? É caso de discutir o modelo, pois todas são iguais em princípio: convidam artistas do mundo etc. e usam o mesmo sistema de contato com as agências governamentais que permite que nesse contexto da globalização você não tenha mais os pavilhões nacionais, mas os representantes nacionais segundo essas agências. Há também o segmento que vem da filantropia, fundações que existem para fazer circular a arte contemporânea.

Ao mesmo tempo, tentamos discutir um pouco o modelo em que as bienais tendem a criar um grande guarda-chuva temático e abrigar todos os artistas sob ele. Esse método é complicado, pois não há um argumento crítico forte que organize a produção. No meu entender, o que falta às bienais é imprimir um caráter crítico, analítico da produção artística. Não no sentido de mostrar o novo como foi feito no passado, pois isso as feiras de arte fazem com mais competência, mas sim de ler a produção que também passa pelas feiras e imprimir um caráter analítico. Por isso é importante reduzir o número, regionalizar.

Ninguém tem dúvida de que São Paulo é uma cidade cosmopolita, não precisamos provar isso por meio da arte. Então vamos falar de outra forma, com mais pertinência. O importante é manter a transparência do processo de escolha e de definições de prioridades.

UOL - A proposta do vazio ajudaria a expor esse processo?
Mesquita - Sim. O vazio como um problema não é apenas da Bienal de São Paulo. Acho que a idéia é propor um esvaziamento, pois vivemos um excesso de produção, de reprodução e de interpretação. Há uma grande voracidade e acredito ser importante parar para pensar sobre o que estamos fazendo, em lugar de ficar recalcando esse processo.

UOL - Como foi o processo de escolha dos artistas?
Mesquita - A idéia inicial era ainda mais radical, queria deixar o prédio inteiro vazio, a conferência podia ser até em outro lugar. É importante pensar que a Fundação Bienal de São Paulo vive de alugar o prédio, então queria interromper esse processo e discutir também isso, a finalidade da fundação.

Ela precisa desse dinheiro, por que não lhe provêem outras fontes. Ela não pode ter um programa ao longo do ano todo por que ela não tem como, e ela é engessada por um estatuto.

Então parti do arquivo da Fundação Bienal de São Paulo, que na verdade é seu único patrimônio. Pensamos em como poderíamos trazer esse arquivo para o espaço da exposição e como ele seria a base para qualquer processo de reflexão.

O segundo ponto foi o edifício, de onde veio a idéia da praça, que será o andar térreo do prédio durante a Bienal. No desenho original de Oscar Niemeyer, o térreo deveria ser aberto, mas o projeto foi alterado, e o edifício já foi inaugurado com esse espaço fechado. A idéia é reabrir essa praça e fazer com que a Bienal reencontre a cidade. Um espaço que receberá performances, encontros, apresentações.

A terceira etapa foi a exposição do arquivo da fundação no terceiro andar. Criamos uma biblioteca de catálogos das bienais do mundo. Com base nisso, convidamos artistas que trabalham primeiramente com crítica institucional e questões mais específicas ligadas a documentos, documentários, narrativas, documento como história e ficção, a divisão entre realidade e ficção que organiza a escritura da história.

UOL - Como a questão institucional se reflete no desenvolvimento desta Bienal especificamente?
Mesquita - É preciso entender que, para a Fundação Bienal de São Paulo, fazer a Bienal é uma atividade terceirizada. Eu fui contratado para fazer a 28ª edição, não sou o curador da fundação. A fundação tem um curador. Eu proponho um orçamento e defino as prioridades. Toda a captação de recursos é feita pela Fundação.

Neste exato momento [agosto de 2008], o conselho está revendo o estatuto para ajustá-lo. Nossa idéia é que ao final da 28ª Bienal seja produzido um documento que será encaminhado à fundação com algumas sugestões e recomendações que nós do meio artístico brasileiro estamos fazendo. A execução disso cabe à Fundação. Pretendemos tomar esta Bienal como um espaço de discussão e de sistematização dessas críticas e questões.

Em junho começamos a promover encontros semanais [palestras abertas ao público que acontecem às quintas-feiras no auditório do MAC, no prédio da Bienal, às 19h30], em que as pessoas vêm até aqui e falam a respeito da Bienal. Estamos fazendo um mapeamento dos temas mais recorrentes nessas participações. Por exemplo, é reconhecida a importância da Bienal na formação do público e dos artistas sobre arte contemporânea. Por isso a necessidade de sistematizar um serviço educativo que não fique reduzido apenas ao período da Bienal, pois há uma deformação das nossas escolas e o arquivo da Bienal é de arte contemporânea. Temos que encadear outros processos além de apenas a exposição. Falta uma instituição de ensino de arte contemporânea, pois infelizmente nosso querido MAC não faz isso. Da mostra vai emergir uma proposta de redefinição da instituição.

UOL - Qual é o orçamento da produção desta 28ª Bienal e qual é a participação da fundação nela?
Mesquita - O orçamento está entre R$ 8 milhões e R$ 9 milhões. Do ponto de vista institucional, o projeto tem sido apoiado pela Fundação, e até aqui estamos indo muito bem.

O processo de captação é muito duro, há muita concorrência em relação ao MAM, à Pinacoteca e ao Masp, por exemplo. Eles têm programação o ano inteiro, então os patrocinadores preferem estar lá.

Como a Bienal de São Paulo responde a isso? Acho que a Bienal tem que investir nessas iniciativas, nos seminários, publicações. Talvez ela não precise ser uma instituição tão grande. Esse prédio é cada vez mais difícil para a arte contemporânea. Ele é um prédio tombado pelo patrimônio histórico de São Paulo, então não se pode fazer nenhuma intervenção, não pode furar a parede, não se pode fazer nada. A reabertura do térreo só vai ser feita sob o argumento de que os caixilhos estão muito velhos, então será feito sob o pretexto de se fazer uma reforma. Num certo momento será preciso fechar novamente o térreo. Que política de preservação é? Também propomos discutir esses pontos, esses prédios que vão ficando disfuncionais e ficam determinando tudo que terá dentro, quando me parece que a arte ainda é o espaço da liberdade e da imaginação.

UOL - Quais são as maiores dificuldades que o senhor elenca na produção desta Bienal?
Mesquita - Acho que há várias coisas. A primeira delas foi fazer as pessoas entenderem o que era o projeto. Evidentemente que sabíamos que o impacto seria o que foi. Mas acho que agora as pessoas já entenderam a proposta. Esta será uma bienal pouco convencional. Não é que não terá arte, o que não teremos será muro, parede. Mas arte teremos.

UOL - Como o senhor compara o modelo da bienal com o modelo da Documenta de Kassel?
Mesquita: Acho que elas são a mesma coisa. A diferença está na escala e no orçamento, pois a Documenta é uma exposição feita na Alemanha, a cada cinco anos, em que o curador tem condições muito boas de produção, em que ele tem cerca de três anos para pesquisar e organizar sua produção. Mas acho que as duas sofrem do excesso de artistas. É mais difícil perceber o argumento curatorial, mas ele está lá nas duas exposições.

A Documenta vem de uma outra história, ela começa nos anos 50 e o objetivo inicial dela era ser uma exposição política, de reconciliar a Alemanha com a Alemanha, para que os alemães pudessem ver do que eles tinham sido privados com a ascensão do nazismo. O segundo objetivo é conciliar a Alemanha com a Europa, então eles trazem artistas de todo o continente. Em terceiro lugar, há uma conciliação com o resto do mundo.

Essa é uma história diferente da Bienal de SP, que é uma estratégia de museu, que tem a idéia da formação de público. Evidentemente que a Documenta cresceu, é um grande negócio para a cidade de Kassel, visitada por 3 milhões de pessoas e ela tem essa escala mundial, ela quer dar conta do mundo e aí começam seus problemas.

UOL - Qual é a relação da Bienal com as feiras de arte?
Mesquita - Elas não se relacionam. Acho que as feiras se apropriaram do modelo da Bienal. Até os anos 1980, a Bienal era o local em que eram apresentadas as últimas tendências artísticas. Hoje as feiras fazem isso anualmente em cinco dias, produzem um monte de trabalhos e vendem tudo.

Nesse sentido, acho que as bienais precisam sim do apoio das galerias, isso tem que ser dito. Muito poucas bienais no mundo podem operar sem o apoio das galerias, mesmo exposições ricas. Novamente, a transparência é fundamental. Não há nada demais no mercado, mas acho que as bienais precisam imprimir um caráter crítico justamente para se diferenciar das feiras.

UOL - Como será feita a publicação do catálogo desta edição da Bienal?
Mesquita - Como muitos dos trabalhos estão em produção, tem essa relação com o tempo, com a documentação. Em vez de tentar fazer um catálogo que desse conta disso, faremos um jornal. Serão nove números editados semanalmente que serão distribuídos pelo jornal "Metro".

Será um jornal de 24 páginas, publicado às sextas-feiras e distribuído na rua de graça. As pessoas colecionam o jornal durante as nove semanas, a décima edição será o índice, a ser publicado uma semana após o fechamento da Bienal.

Compartilhe:

    EDIÇÕES ANTERIORES

    GUIA DE RESTAURANTES

    Mais Guias