Com ousadia, Coringa muda as regras clássicas de filmes de super-heróis
Bruno Ghetti
Colaboração para o UOL, em Veneza (Itália)
31/08/2019 14h15
Antes de mais nada, é importante desfazer um mal-entendido: Coringa não é nem nunca foi um "filme de super-herói" - e nem sequer um de "supervilão". Desde o começo do projeto, a ideia foi tomar emprestado do universo das HQs um personagem rico, apaixonante, para, a partir dele, criar um drama humano denso, elaborado, sem focar em cenas envolvendo superpoderes ou efeitos visuais extraordinários. Ou seja: fazer uma espécie de subversão às regras clássicas de filmes do universo DC ou Marvel.
Nas mãos do cineasta Todd Phillips, a ousadia funcionou, e com grande habilidade. O longa, que estreia no Brasil em 3 de outubro, é sobre um homem perturbado, que leva uma vida precária, quase sem momentos de alegria. É Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um esquisitão que já não é nenhum adolescente, mas que mora ainda hoje com a mãe. Não para em emprego nenhum e é incapaz de atrair uma namorada. Tem sérios problemas emocionais e faz tratamento psiquiátrico, embora o efeito dos medicamentos e da terapia seja quase nulo.
Teve que se virar: com os anos, forjou para si mesmo uma maneira de aguentar tanta infelicidade - quando algo de ruim acontece, dá gargalhadas. O que o coloca em situações constrangedoras, mas Fleck não se permite chorar. Ri o tempo todo, apesar de destroçado de melancolia por dentro.
Infelicidade das infelicidades: Fleck sonha ser um comediante, mas não leva o menor jeito para a coisa - quando consegue arrancar risos das pessoas, é antes pela sua figura ridícula do que por suas piadas. Certa noite, vestido de palhaço, sofre uma grande violência no metrô - mas em um impulso de brutalidade, consegue reverter a situação. Sente, naquele instante, pela primeira vez um tipo de prazer, de sensação de grandeza, que nunca teve antes. É claro que buscará esse mesmo entusiasmo outras vezes, iniciando ali uma caminhada rumo à violência que tornará o frágil Fleck no temível Coringa.
O longa tem adrenalina, mas só em momentos bem específicos; o roteiro é habilidoso o suficiente para jogar com o emocional do espectador e só surpreendê-lo com pancadaria de vez em quando, sem desperdiçar sangue cenográfico. É pura economia de quebra-quebra. Mas quando o sangue aparece, jorra de uma maneira assustadoramente impactante, agressiva. E há situações dramáticas envolvendo Fleck que são realmente pesadas - não é um filme para pessoas de nervos frágeis.
O filme tem um problema, contudo: por vezes quer explicar demais o que leva Fleck a agir de uma maneira ou outra - quando, em geral, as imagens já deveriam falar por si. Além disso, a mente humana tem partes nebulosas demais para compreendermos 100% por que as pessoas tomam certas atitudes. Mas para um filme voltado para o grande público, talvez seja um didatismo até desejável: assim, amplia sua capacidade de comunicação com os espectadores.
Oscar para Joaquim Phoenix?
Desde que Daniel Day-Lewis anunciou aposentadoria, Joaquin Phoenix se tornou o maior ator em atividade em Hollywood, e é inacreditável que não tenha ainda um Oscar na prateleira de casa. Tudo indica que chegou a hora: o Coringa dele é uma das criações mais assombrosamente intensas que o cinema já foi capaz de produzir.
Desde a primeira cena, quando ele ensaia um sorriso no espelho, já se percebe que se está diante de algo mais que um grande ator: é uma verdadeira força da natureza, no ápice de sua exuberância. O personagem tem um pouco de tudo o que Phoenix já fez em outros papéis, mas que desta vez ele pode utilizar sem maiores freios, até pelo caráter excêntrico e maneirista de uma figura como o Coringa. E Phoenix consegue alternar expansividade e contenção com enorme sabedoria.
O personagem é um presente a qualquer ator de talento enérgico, e se Jack Nicholson e Heath Ledger conseguiram performances tão inesquecíveis no passado é porque souberam explorar partes extremas de sua personalidade (Nicholson com foco no lado travesso, gaiato; Ledger, no mais sombrio, nebuloso). Phoenix encontra um caminho próprio, mais humano do que os dos antecessores.
O que vemos na tela é tanto a história da psicologia de um simples vilão de HQ quanto a de um sujeito marginalizado, sem o menor interesse para a sociedade. Um personagem dos quadrinhos, mas que poderia estar em qualquer centro urbano. Um homem que não vê sentido na vida até ter um mínimo de poder nas mãos, mas que perde o controle sobre ele.
Coringa é um estudo sobre como pessoas violentadas por uma sociedade excludente, opressiva e egoísta podem se tornar criaturas perturbadas. É claro que Fleck é um caso especial: tem uma história de vida peculiarmente trágica, além de elementos genéticos de loucura, então se ele se tornou um grande criminoso e inimigo de Gotham City também foi por causa de questões pessoais. Mas se a sociedade não fosse tão cruel com gente como ele, jamais teria chegado a tanto.
O filme ganha contornos extremamente políticos e atuais quando, de repente, outras pessoas desiludidas como Fleck começam a ver naquele palhaço violento uma figura antissistema a ser seguida. Torna-se um ídolo, de uma hora para outra, e Gotham é entregue à barbárie quando a população começa a vestir máscaras de palhaço e ir para as ruas, imitando seu novo herói.
Com isso, o filme chama atenção para algo muito mais próximo a nós do que talvez imaginemos: um sujeito metido a "engraçadão", que promete respostas fáceis aos problemas do mundo por meio da violência, não pode ser tratado como um ídolo. Ou a sociedade corre o risco de se tornar um caos ainda pior do que já está. E como não existem super-heróis no mundo real, gestos irresponsáveis como escolher errado um líder pode nos custar demasiadamente caro.