Ligações perigosas

Conexão entre rap e gangues que começou nos primórdios do hip-hop volta a esquentar nos EUA

Maurício Dehò Do UOL, em São Paulo Divulgação
Reprodução/Instagram

"Se vocês ainda não sabem, cadeia ou morte, infelizmente, são as melhores estratégias de marketing para um rapper"

Pode parecer uma frase antiga, mas, em 2018, a máxima ainda está valendo para o rap norte-americano. Foi com ela que o DJ Akademiks, amigo próximo do rapper Tekashi 6ix9ine (foto), explicou por que o disco "Dummy Boy", um dos mais polêmicos do momento, teve seu lançamento adiado. Era de se esperar, afinal, 6ix9ine está mais uma vez atrás das grades e pode pegar de 32 anos a prisão perpétua por extorsão e ligação com uma gangue criminosa.

A conexão entre os mundos da música e das gangues, que remete aos primórdios do estilo, tem seus momentos de ebulição. O maior deles foi na época das mortes de Tupac Shakur e Notorius B.I.G., nos anos 1990 --casos que nunca foram resolvidos e recentemente levaram a mais uma leva de séries e documentários retratando suas histórias.

Agora, um ano depois de o hip-hop passar o rock como gênero mais consumido da música dos EUA pela primeira vez, novas mortes e prisões reacendem o debate sobre como ambiente determina a criação cultural e o real impacto entre as duas partes. E o resultado é que sim, rap e gangues seguem tendo ligação íntima, um se beneficiando do outro às margens da sociedade, algumas vezes subliminarmente, em outras, virando arma para se ganhar exposição --até que em casos como o de 6ix9ine, as coisas tomam proporções inesperadas.

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Soundcloud rap: mudou o jogo

Décadas se passaram, a tecnologia evoluiu e o modo como se produz e consome música mudou, mas o rap segue sendo a forma de expressão para os jovens da América do Norte, principalmente os negros e pobres. O rapper canadense Shad, apresentador da série documental da Netflix "Hip-Hop Evolution", que conta a história do gênero, explica: 

"O rap é o modo preferido de os jovens que crescem em meio à violência se expressarem. Então, vejo que sim, ainda há conexão entre gangues e o rap, porque a música continua refletindo esse tipo de realidade. O tom e o ritmo mudaram com o passar dos anos, mas, infelizmente, as experiências não mudaram tanto para essa nova geração. Há numerosas mortes e prisões nas cenas locais e o cenário global de violência e drogas mostra que, apesar de décadas colocando holofotes nesta realidade, muita gente jovem segue presa a ela."

Uma cena que deu nova vida ao rap norte-americano é a do "Soundcloud rap". E justamente por dar espaço para quem vem de baixo. Com produção mais modesta, uma nova leva de artistas surgiu usando o Soundcloud, plataforma de áudio online, como meio de divulgação. Além disso, cabelos coloridos, tatuagens no rosto e as batidas graves marcam outras características que se espalham por estes rimadores. Armas, drogas e calhamaços de dinheiro muitas vezes entram no cenário, principalmente dos clipes.

Foi daí que surgiram o já citado 6ix9ine e XXXTentacíon, um rapper que já era grande na cena, mas que foi alçado a fenômeno quando foi morto em junho e ganhou conhecimento global, além de outros como Lil Pump, Smokepurpp e Lil Peep --que morreu em 2017, de overdose.

A morte de XXXTentacion, autor do hit "SAD!", foi tratada como um assassinato em um assalto. Mas, por trás disso, a questão da violência era central. Ele já havia sido preso na adolescência, por assalto e agressão. Mais tarde, áudios surgiram em que ele admitia ter esfaqueado pessoas e batido na namorada. Na época de sua morte, ele ouvia conselhos de que devia contratar seguranças, após ouvir ameaças de gangues.

Como diz a frase que abre esta matéria, a morte de XXXTentacion só aumentou a atenção sobre ele e lhe rendeu muita fama, cliques e visualizações.

5 personalidades do rap que tiveram ligação com gangues

AP/Brynn Anderson

O rap agressivo aumenta a violência?

Tal qual com games e heavy metal, o debate volta e meia volta à tona

O tipo de debate que coloca produtos culturais agressivos e os liga a crimes é algo que reaparece de tempos em tempos, seja com games, seja com a música. O rap sabe bem como é isso, principalmente com o ataque que sofreu na época do crescimento do gangsta rap. 

A morte de XXXTentacion foi uma das que trouxe de volta este tipo de debate. Em uma de suas letras, ele diz "Vadia, eu espero que você descanse em paz". Mais tarde, surgiu um áudio em que ele admitia ter agredido uma namorada e esfaqueado nove pessoas. No entanto, nunca foi comprovado que ele tivesse ligações com o mundo do crime --ou se não passava de um comportamento individual do rapper. 

Outro caso que chamou a atenção foi no México, que também tem problemas sociais graves quanto à violência. O rapper da cena local QBA foi preso e admitiu ter assassinado e dissolvido os corpos de três pessoas, cumprindo ordens de uma gangue, o Cartel Jalisco Nova Geração.

Dados dos anos de 1990 indicavam um aumento de 6% nos números de integrantes de gangues nos EUA, o que pressionou ainda mais as autoridades a investigarem a cena. 

No entanto, um estudo de 2014 do Rap Research Lab mostrou que, apesar de um aumento de letras de rap que falam de crimes e drogas, isso não se espelhava em um aumento no número de crimes.

"Depois de uma cobertura persistente da mídia sobre as letras de rap, eu decidi bater os dados com a taxa de crimes. E os dados mostraram muito pouca correlação entre crimes e letras agressivas. Por exemplo, entre 1993 e 1995, houve queda nos crimes, enquanto as letras agressivas aumentavam", explicou Tahir Hemphill, responsável pelo estudo. 

Prova definitiva? Nem tanto. 

Nos primórdios...

Há muitas conexões entre rap e gangues. Primeiramente, a cena foi construída ligada a negócios ilegais, no começo do rap. As duas partes sempre estiveram conectadas e uma se sobrepondo à outra. No gangsta rap, você tem os casos da vida nas ruas contados de forma inédita, que eram relatados como celebração de poder e experiência nas quebradas, uma tradição que começou com Schoolly D, Ice T e o NWA.

Shad, Rapper e apresentador do documentário "Hip Hop Evolution", da Netflix

Eu estava do lado da gangue dos Crips, mas nunca entrei no jogo de cabeça. Eu era considerado um afiliado, quando você veste as cores, mas não é um gângster de verdade. Mas, quando você se conecta com os jogadores, o mundo vira ao contrário. É estranho. Eu tinha um Porsche e me vestia como rapper, mas continuava roubando com os manos das ruas faziam. O rap me fez ver que eu não tinha que viver o jogo, eu tinha que documentá-lo.

Ice T, Um dos precursores do gangsta rap e também conhecido pela banda Body Count

De NY à Califórnia

As frases acima falam sobre a cena do gangsta rap, estilo que cresceu na ensolarada Califórnia, no fim da década de 1980, quando se começou a falar nas letras sobre a vida dos jovens negros nas comunidades mais pobres de Los Angeles e suas conexões com crimes e drogas. Essa é a conexão que ficou mais famosa entre os dois mundos.

Mas, desde a criação do hip-hop e do rap em Nova York, ela já existia. As festas já eram regadas a drogas e as gangues locais influenciavam a cena musical. Afrika Bambaataa, um dos pioneiros do Bronx, nos anos 1970, conta na série documental "Hip Hop Evolution" que a cultura de gangues de rua era violenta e que, ao vê-los se matando por besteira, tentou mediar a paz entre diversos grupos. Uma das conquistas foi conseguir realizar eventos musicais pacíficos para toda a comunidade.

FUCK THA POLICE

Aquele momento de paz em Nova York não foi duradouro. Mais tarde, surgiu a cena na Califórnia, que não só veio regada à música de gente como Ice-T e Schoolly D, mas também com problemas sociais. A música "Fuck Tha Police" (foda-se a polícia, na tradução), do NWA, ilustra bem a realidade no começo dos anos 1990, quando gangues e músicos da cena entravam em confronto com a polícia, promoviam saques e causavam terror na imprensa e em quem via tudo de fora.

Também nos anos 1990 ficou clara uma briga entre Costa Leste (de Nova York) e Costa Oeste (da Califórnia), que esquentou uma rivalidade musical e também trouxe atenção à cena. 

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Anos sombrios

O momento mais duro para o rap norte-americano foi com a briga entre Leste e Oeste, quando rappers e gravadoras trocavam farpas e ameaças. Os protagonistas acabaram sendo Tupac Shakur e The Notorius B.I.G., ambos curiosamente de Nova York, que levavam fama tanto pela música quanto pelas confusões.

Tupac chegou a ser baleado em um estúdio da Bad Boy Records em 1994. No ano seguinte, B.I.G. ironizou com a música "Who Shot Ya?" (quem atirou em você?) e foi respondido por Tupac com "Hit 'Em Up".

Tupac e B.I.G. tiveram momentos de amizade e proximidade. Por um bom tempo eles chegaram a dizer que a intriga e que era produzido pela mídia, mas a história acabou tragicamente, com ambos assassinados a tiros, Tupac em 1996 e B.I.G. no ano seguinte. A série "Unsolved", da Netflix, voltou a retratar os casos, mais de duas décadas depois.

Para Shad, apresentador do "Hip Hop Evolution", as polêmicas sempre ajudaram a alimentar o estilo --ainda que não sejam motivo de orgulho:

Esse tipo de coisa certamente expandiu o rap, porque ajudou a criar uma audiência que não existia para este assunto. Mas as mortes de Tupac e B.I.G foram provavelmente o período mais sombrio da história do hip-hop.

A maior rivalidade

As duas gangues que dominam a atenção nos EUA. Cada uma com suas cores, gestos e regras

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A Crips

Os azuis nasceram em 1969, no subúrbio de Los Angeles. A gangue era formada por jovens negros que disputavam territórios com grupos de hispânicos e supremacistas brancos. A gangue foi fundada por Raymond Washington e Stanley Williams. Preso por roubo, Raymond foi assassinados em 1979 após deixar a prisão. Stanley foi condenado a morte após matar quatro pessoas. A sentença foi cumprida em 2005. Estimava-se, em 2008, que a gangue tinha 35 mil integrantes. São comumente associados a esta gangue nomes como Snoop Dogg, Eazy-E, Warren G e Nate Dogg.

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A Bloods

Seus integrantes usam vermelho. A gangue foi criada em Los Angeles em 1972, para rivalizar com os Crips. Sylvester Scott e Benson Owens estão entre os fundadores, que eram de gangues menores, que se juntaram para tentar evitar uma expansão territorial que a Crips tentava fazer. Hoje, espalhada pelos Estados Unidos, a gangue tem estimados 30 mil integrantes. Alguns dos nomes comumente ligados à Bloods são Suge Knight (dono da gravadora Death Row Records), The Game, Sen Dog (Cypress Hill) e Cardi B.

Eu acho que artistas sempre tentam parecer legais e ousados de certa forma. Essa é a pose que estar na música popular pede, em termos de marketing. Mas a pobreza e a violência são realidades duras para muita gente na América do Norte e essa conexão muitas vezes vai além da imagem. É uma história que infelizmente ainda temos de contar.

Shad , do "Hip Hop Evolution", explicando que nem sempre as polêmicas são apenas marketing

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Mortes

O ano de 2018 foi trágico para o rap norte-americano, com diversas mortes, seja no mainstream, seja nas cenas locais. A mais marcante foi de XXXTentacion, que chegou a levantar rumores de que pudesse ter sido encomendada por gangues, o que nunca foi comprovado. Todos os quatro suspeitos de envolvimento com o crime foram presos pela polícia dos Estados Unidos e aguardam julgamento.

Jimmy Wopo, por outro lado, também morto em junho, em Pittsburgh, foi ligado ao mundo do crime pela polícia. As autoridades encontraram provas de que ele era líder de uma gangue responsável por assassinatos, assaltos e tráfico de drogas. Seu grupo até postava vídeos no YouTube em que se gabava dos crimes cometidos. Wopo foi morto a tiros por dois outros homens quando estava em um carro. 

Em outubro, foi a vez de Young Greatness, famoso pelo hit "Moolah", que foi baleado fora de um restaurante em Nova Orleans, aos 34 anos. Os suspeitos fugiram.

E assim vão sendo listadas as mortes. Uma busca rápida mostra como o problema da violência segue grande nos Estados Unidos, de forma geral. Só na última semana, há três notícias assim: o rapper Ghost Magneto morreu em Houston, encontrado baleado em um carro do lado de fora de um clube de striptease; em Nova York, Hollywood Play foi morto a tiros, por uma pessoa que passou de carro por onde ele estava; já em Los Angeles, Blvd Quick foi morto em um tiroteio.

Michael Loccisano/Getty Images for MTV

Hip-hop > Rock

Em 2017, o estilo passou pela primeira vez o rock como o mais consumido nos EUA

Apesar da importância do hip-hop, o estilo nunca havia sido líder de consumo nos Estados Unidos. O levantamento anual Nielsen's Year-End Report mostrou que em 2017, em conjunto com o R&B, o hip-hop tomou a liderança que era do rock.

Os líderes do hip-hop tiveram 24,5% de participação, com o rock caindo a 20,8%. O pop apareceu em terceiro, com 12,7%.

Os principais nomes responsáveis pela marca foram artistas como Lil Uzi Vert, Post Malone, Kendrick Lamar e Migos, cada um com mais de 800 milhões de audições em seus hits mais famosos.

Algo marcante é notar que o rock permaneceu líder nas vendas físicas, enquanto o hip-hop manteve a disparada nas digitais, mostrando o comportamento do público jovem. 

"Acho que o streaming é grande parte disso e acho que faz muito sentido hip-hop e streaming darem certo, porque este sempre foi um estilo que abraçou as novas tecnologias. Os rappers incorporaram isso rapidamente ao jeito que a música é feita e consumida", explica Shad.

E o futuro?

Após mais de quatro décadas de música e crimes se encontrando, parece difícil que a questão se resolva num futuro próximo, uma vez que o tema é mais social do que apenas policial. Os Estados Unidos vivem um momento delicado em relação à violência, ainda que o número de assassinatos tenha caído em 2017, pela primeira vez em dois anos. 

No outro extremo, onde o dinheiro não é problema, há espaço de sobra para que o rap siga em expansão. Em 2018, há uma nova série de talentos roubando a cena e brilhando, enquanto outros nomes das antigas também se destacam: Drake é o rei do momento, com seu hit "God's Plan", Travis Scott fez barulho com o disco "Astroworld", Jay-Z e Beyoncé lançaram como The Carters o disco "Everything is Love" e até Eminem deu o que falar, com "Kamikaze".

Na elite, o papo sobre gangues é quase um sussurro, com poucos falando disso. A exceção é Cardi B, que admitiu neste ano que foi próxima da gangue Bloods, mas foi bem clara sobre o que é misturar gangues com negócios, quando seus milhões estão em jogo: 

Ser de gangue não me deu um só dólar. Não falo mais disso porque perderia meus apoios financeiros.

Shad, do "Hip-Hop Evolution", avalia que o momento para que o rap siga em alta como música é tranquilo e favorável: "Hoje temos alguns dos artistas mais criativos e destemidos da história --Kendrick Lamar, por exemplo-- e temos um conjunto de talento com o momento certo. Só o futuro pode dizer até onde o rap pode chegar".

Que seja em paz...

Christopher Polk/Getty Images

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