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Beijo gay em livro criticado por Crivella é cena imprópria segundo o ECA?

HQ Vingadores A Cruzada das Crianças que a Prefeitura do Rio tentou recolher - Reprodução
HQ Vingadores A Cruzada das Crianças que a Prefeitura do Rio tentou recolher Imagem: Reprodução

Carolina Farias

Do UOL, no Rio

07/09/2019 04h00

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), tentou recolher das prateleiras da Bienal Internacional do Livro do Rio a HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças sob a alegação de que a obra da coleção Graphic Novels da Marvel, onde dois super-heróis namorados se beijam, traz "conteúdo sexual para menores" e fere o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O recolhimento não chegou a acontecer e todos os exemplares na Bienal foram vendidos.

A Prefeitura do Rio, em uma nota, justificou a tentativa de vetar a publicação informando, em nota, que a legislação determina que publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes sejam comercializadas com lacre - embaladas em plástico ou material semelhante - com a advertência de classificação indicativa de seu conteúdo.

Especialistas no ECA ouvidos pelo UOL apontaram que alegação da prefeitura foi feita com base no parágrafo único do artigo 78 do estatuto: "As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca." No entanto, o conteúdo não é considerado pornográfico.

"Uma cena de beijo entre adolescente ou adultos, entre héteros ou homossexuais, não configura ato sexual ou pornográfico e não se enquadraria nesses crimes dispostos no ECA. Não é possível considerar essa publicação inadequada e pornográfica, conforme a própria definição da lei sobre pornografia", afirmou Ariel de Castro Alves, advogado e ex-conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos Humanos de São Paulo).

De acordo com o próprio ECA, conforme lembrou o conselheiro, no artigo 241-E, a expressão cena de sexo explícito ou pornográfica compreende "qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais."

O advogado ainda lembra que a Constituição Federal prevê a liberdade artística, cultural e literária e que a ação da prefeitura viola esse conjunto de leis. "Isso não faz parte da conveniência e escolha da administração pública. Senão pode acabar ficando à mercê da religião ou ideologia de cada governante sobre o que é ou não adequado. A prefeitura poderia acionar a Vara da Infância e Juventude, tem poder para recolher, restringir ou censurar."

O artigo 79 do ECA, dentro das justificativas da prefeitura, prevê que publicações que têm o público infanto-juvenil "deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família." "Quando o artigo trata dos valores da família, devemos incluir as famílias formadas por casais homoafetivos, que são reconhecidos pela Justiça há anos no Brasil. As milhares de publicações de beijos de casais héteros, até em apostilas escolares, não geram polêmica e censura. Essa ação da prefeitura carioca é homofóbica", afirmou Alves.

O coordenador da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Azambuja, classificou a ação da prefeitura de abuso de poder. "Em absoluto [a publicação] fere o ECA. Pela figura, [são] dois super-heróis, com as mãos na cintura, um beijo sem carícias, uma mera demonstração de afeto. O que a prefeitura tentou fazer é abuso de poder sob pretexto de regular e apreender uma revista que com certeza não tinha material impróprio."

Azambuja também lembrou que, do ponto de vista legal, após o reconhecimento de casais homoafetivos pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em 2011, essas famílias passam a ser protegidas pelo Estado e não podem ser consideradas inadequadas ou impróprias.

"E agora a homofobia é crime. Nada do que está ali é diferente do que vemos nas ruas, nas praias, no metrô. É um comportamento admitido e forma de intolerância contra ele é criminalizada. Foi um jeito de estimular o comportamento intolerante nessas crianças, o contrário do que diz a Constituição, que prevê que sociedade deve ser livre, justa e tolerante."