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A história do "clássico" racista que aparece em cena de "Infiltrado na Klan"

O ator Topher Grace como David Duke em cena do filme "Infiltrado na Klan", de Spike Lee - Reprodução
O ator Topher Grace como David Duke em cena do filme "Infiltrado na Klan", de Spike Lee Imagem: Reprodução

Caio Coletti

Colaboração para o UOL

22/11/2018 04h00

"Infiltrado na Klan" conta uma história real que é mais estranha do que a ficção. No filme de Spike Lee, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (22), o policial negro Ron Stallworth (John David Washington) consegue se infiltrar na organização de supremacistas brancos Ku Klux Klan.

Com a ajuda do colega judeu Flip Zimmerman (Adam Driver), ele tenta desmontar as operações da Klan de dentro para fora, de forma que o filme nos dá acesso aos rituais e reuniões de um dos grupos mais infames, e ao mesmo tempo mais misteriosos, dos EUA.

Em uma cena, Stallworth observa por uma janela enquanto membros da Klan assistem a um filme antigo que retrata a organização como uma força heroica, e os personagens negros ou como perigosos predadores sexuais ou como pessoas preguiçosas e baderneiras. Enquanto o filme é exibido em um telão, os membros da Klan gritam e comemoram.

Assim como tudo em "Infiltrado na Klan", a cena é ainda mais chocante porque é verdadeira. O filme que eles assistem se chama "O Nascimento de Uma Nação". Lançado em 1915, é creditado por historiadores como responsável por trazer a KKK para o século 20.

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Preconceitos

"Um grande filme que advoga pelo mal". É assim que o crítico de cinema Roger Ebert definiu "O Nascimento de Uma Nação", em um texto de 2003. O pioneirismo do longa na arte do cinema é incontestável: dele, surgiram técnicas de câmera e de narrativa que definiram a produção de Hollywood e do mundo todo por mais um século.

O filme de D.W. Griffith, inspirado em dois livros de Thomas Dixon Jr., retrata inicialmente a Guerra Civil americana, motivada em grande parte pela discordância entre estados do Sul e do Norte do país sobre a abolição da escravatura.

A segunda metade do épico, por sua vez, se concentra no período pós-guerra, conhecido como Reconstrução, onde a vitória dos abolicionistas levou a uma proposta reestruturação do país para que os negros libertados se integrassem na sociedade.

É especialmente na segunda parte que "O Nascimento de Uma Nação" mostra os seus preconceitos. Não só os personagens negros são retratados de forma negativa, como Griffith e Dixon Jr. reforçam a mensagem de que, abolicionistas ou não, famílias brancas devem se reunir após a Guerra Civil para, como diz um dos intertítulos do filme, "defender o seu direito de nascença ariano".

Pôster de "O Nascimento de Uma Nação" - Divulgação - Divulgação
Pôster de "O Nascimento de Uma Nação"
Imagem: Divulgação

É "só um filme"?

Exatamente por causa do seu aspecto tecnicamente inovador, "O Nascimento de Uma Nação" impressionou o público americano quando foi lançado. Em uma das exibições do filme, conta-se que um membro da plateia ficou tão impressionado com o que testemunhava que sacou uma arma e atirou na tela, tentando salvar a heroína de ser estuprada por um personagem negro vilanesco (Gus, interpretado pelo ator branco Walter Long).

Estimativas de quanto o longa arrecadou na bilheteria variam bastante, mas são sempre impressionantes. Segundo o historiador James Monaco, "O Nascimento de Uma Nação" rendeu US$ 20 milhões para seus produtores, o equivalente a quase US$ 500 milhões se ajustarmos pela inflação do período entre 1915 e 2018. Em artigo para a revista "Time", no entanto, o crítico Richard Corliss estima que o longa possa ter rendido, na verdade, até US$ 1,8 bilhão.

"O Nascimento de Uma Nação" também foi exibido na Casa Branca para o então presidente Woodrow Wilson, um amigo de longa data do autor Thomas Dixon Jr.. Segundo o escritor, Wilson aprovou o filme e o descreveu como "a história pintada na tela".

É claro que, mesmo em 1915, houve resistência à história distorcida representada pelo filme. Organizações de justiça social e representantes de diversas instituições religiosas ao redor dos EUA condenaram "O Nascimento de Uma Nação" e promoveram boicotes ao longa, gerando vários conflitos violentos por todo o país. Mas as ações pouco fizeram para impedir o filme de se tornar um fenômeno popular.

Cena de "O Nascimento de Uma Nação" - Getty Images - Getty Images
Cena de "O Nascimento de Uma Nação"
Imagem: Getty Images

Das telas para o mundo real

Em novembro de 1915, meses depois do lançamento de "O Nascimento de Uma Nação", o professor William Joseph Simmons fundou uma nova encarnação da Ku Klux Klan. Admitindo a inspiração pelo filme de D.W. Griffith, ele reuniu um grupo de 15 amigos para subir uma colina e queimar uma cruz (imagem simbólica dos atos da KKK) no Dia de Ação de Graças.

A organização fundada por Simmons se expandiu nacionalmente e agiu de forma cada vez mais violenta até 1944, quando divisões internas e investigações criminais contra membros fizeram com que ela entrasse em colapso.

A KKK que conhecemos em "Infiltrado na Klan" é a terceira encarnação do grupo, que existe até hoje. David Duke, interpretado por Topher Grace no filme, foi o líder da organização entre 1974 e 1980, e segue uma figura proeminente do suprematismo branco nos EUA -- em 2016, foi um dos apoiadores mais entusiásticos da campanha de Donald Trump para presidente, embora o próprio tenha evitado se associar ao ex-líder da KKK publicamente.

Sempre afiado, Spike Lee conecta a desinformação e o preconceito espalhado tão efetivamente por "O Nascimento de Uma Nação" com expressões de ódio dos anos 1970 que, não fossem os figurinos e penteados, poderiam muito bem estar acontecendo hoje.