Topo

Entre crise e demagogia, uma oportunidade de repensar um novo Carnaval

Mocidade Independente de Padre Miguel: campeã do Carnaval do Rio ao lado da Portela - Marco Antônio Teixeira/UOL
Mocidade Independente de Padre Miguel: campeã do Carnaval do Rio ao lado da Portela
Imagem: Marco Antônio Teixeira/UOL

Anderson Baltar

Colaboração para o UOL

17/06/2017 04h00

A decisão tomada na noite da última quarta-feira (14) pela Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) de suspender os desfiles do Carnaval 2018 do Rio de Janeiro traz um aspecto bastante palpável: é necessário repensar urgentemente os modelos de gestão do dito "Maior Espetáculo da Terra". A entidade sempre apregoou como mantra que a sua atuação deu independência às agremiações e as tornou economicamente sustentáveis. Uma meia verdade totalmente explicitada com esta decisão, que visa pressionar o prefeito do Rio e angariar apoio nas entidades de classe do setor de serviços carioca.

Dos quase R$ 7 milhões que cada escola do Grupo Especial recebe para fazer os seus desfiles, R$ 2 milhões vêm desse aporte da Prefeitura do Rio. A renda é complementada com a cota da TV Globo, venda de ingressos, CDs e eventos nas quadras. Eventuais patrocínios são um fôlego a mais para as agremiações. Os enredos patrocinados dão a injeção financeira que, em muitos casos, pode conduzir uma escola ao campeonato. Porém, com a crise econômica, conta-se em poucos dedos o número de escolas que têm essa modalidade de tema. Das seis agremiações que já definiram o seu enredo para 2018, por exemplo, apenas a Mocidade Independente de Padre Miguel terá patrocínio.

De fato, nas décadas de 1990 e 2000, quando o enredo patrocinado encontrou seu auge, o discurso da independência se sustentava. E mesmo assim, em muitos casos, valendo-se do dinheiro público de outras praças, com uma profusão de enredos patrocinados por governos de outros estados e prefeituras.

Porto da Pedra - Antonio Scorza/AFP - Antonio Scorza/AFP
Carro da Porto da Pedra mostra as misturas do iogurte com frutas no desfile em 2012
Imagem: Antonio Scorza/AFP

Com o esgotamento do modelo, quase sempre empobrecedor culturalmente (quem se esquecerá da infeliz homenagem ao iogurte do Porto da Pedra, em 2012?), as escolas de samba voltaram-se para o apoio da Petrobras e do Governo do Estado. Com o fracasso dos dois, a Prefeitura do Rio assumiu o aumento da subvenção de R$ 1 milhão para R$ 2 milhões.

Evidentemente, o corte anunciado pelo prefeito Crivella tem pouca eficácia real para sua administração. Os R$ 12 milhões retirados das escolas de samba serão insuficientes para melhorar o atendimento do sistema de creches municipal. Existem outras medidas como finalmente elaborar o Plano Municipal de Educação. Ou reduzir as isenções fiscais às empresas de ônibus. A decisão do prefeito foi de uma imensa demagogia e irresponsabilidade, criando uma lamentável dicotomia entre Carnaval e creches. É possível e vital termos os dois, desde que com boa administração e zelo.

A galinha dos ovos de ouro da economia carioca

Por mais resistência que haja por parte de alguns setores de nossa sociedade, que têm dificuldade de aceitar a natureza miscigenada e sincretizada do povo brasileiro, o Carnaval é um dos principais traços identitários de nossa cultura. E o artigo 215 da Constituição Federal é bem claro: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. E também protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Resumindo: tem que ter dinheiro para Carnaval, sim, dentro da rubrica das secretarias de Cultura e Turismo.

E o caso do Rio de Janeiro é peculiar. Com uma economia baseada no setor de serviços, os grandes eventos têm papel fundamental para fazer a roda girar. Mediante o investimento de R$ 60 milhões do poder público nas escolas de samba de todos os grupos e na estrutura que permite o desfile de mais de 500 blocos de rua, a cidade tem um incremento de R$ 3 bilhões em sua movimentação econômica. É incalculável o número de empregos gerados direta e indiretamente pelo Carnaval, seja nos barracões das escolas, hotéis, bares, restaurantes e agências de viagens. Em tempos de desemprego recorde, não parece ser muito inteligente atacar a galinha dos ovos de ouro da economia carioca.

É também um momento vital para que as escolas de samba repensem seus formatos de administração. Se a Liga afirma ser Independente, ela precisa fazer valer seu nome de fato. É preciso modernizar a gestão do Carnaval, trazendo novos formatos de comercialização. Romper as amarras que transformaram os desfiles em apenas mais um item da grade de shows da Rede Globo, mediante um contrato que não valoriza as escolas em sua importância simbólica e que inviabiliza o fechamento de outros contratos comerciais. É fundamental encontrar novos modelos de patrocínios, vendendo o evento com várias cotas e atrelando as marcas das escolas e da Liga aos produtos dos apoiadores.

Por que não temos o creme dental, a cafeteria, o sorvete ou o iogurte oficiais do Carnaval, com as marcas das escolas nas embalagens e promoções dando direito aos ingressos? Por que não facilitar o acesso do povo ao Sambódromo, destinando mais setores para quem não tem dinheiro e dando uma contrapartida pelo dinheiro público investido? Por que não fazer a venda dos ingressos pela internet, aceitando parcelamento em cartões de crédito? E licenciamento de produtos, por que não tentar? Algumas poucas escolas, como a Portela, já acordaram para essa realidade, realizando estudos de branding e licenciamento de marca, além de criar um inovador programa de sócio-torcedor, nos moldes dos clubes de futebol.

Em suma: vai ter Carnaval, sim. Com mais ou menos verba, as escolas de samba irão se adaptar e botar seus desfiles na avenida. Com mais ou menos luxo (e será que é tão importante assim?), ouviremos os tamborins em fevereiro. A medida da Liesa serviu de alerta ao prefeito, que, diga-se de passagem, foi eleito com o apoio de quase todos os presidentes das escolas. O entendimento acontecerá, até como a Riotur já sinaliza, com a possibilidade da criação de um caderno de encargos com a iniciativa privada. A esperança que resta é que as escolas de samba entendam o momento e o aproveitem para repensar a sua forma de gestão e, sobretudo, a relação com o grande público, que foi paulatinamente abandonado pela ânsia do espetáculo turístico.

A bola está quicando. Resta saber quem chutará para o gol.