Na Flip, Jaguar conta sobre briga em que Chico Buarque cuspiu em Millôr
Abrindo as atividades da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), dois discípulos e um amigo de Millôr Fernandes se reuniram para relembrar histórias sobre o homenageado do evento neste ano. A conversa juntou os 'Cassetas' Reinaldo e Hubert, que iniciaram suas carreiras com colaborações para o jornal satírico "O Pasquim", e o cartunista Jaguar, um dos criadores da publicação em que Millôr trabalhou por vários anos.
Jaguar não hesitou em contar histórias "cabeludas" do cartunista. Comentando a inimizade entre Millôr e Tarso de Castro, que era editor do "Pasquim", Jaguar lembrou de uma briga envolvendo Chico Buarque. "O Chico, que era muito amigo do Tarso de Castro, virou inimigo do Millôr por um tempo. Uma vez, num bar no Leblon, ele perguntou: 'O que você tem contra mim?'. Millôr não respondeu. Chico deu uma cusparada nele. Millôr atirou tudo que tinha na mão na direção do Chico, mas não acertou nada. Contei essa história dizendo que o maior humorista brasileiro brigou com o maior compositor brasileiro. Me ligaram para perguntar se eu tinha brigado com o Martinho da Vila", relembrou, rindo.
Jaguar também desvendou outra das muitas polêmicas em torno da figura de Millôr: a história de que o cartunista não fora preso pela ditadura por ter "as costas quentes". "O Tarso de Castro [editor do 'Pasquim'] espalhava que o Millôr não foi preso porque tinha as costas quentes. Mas a verdade é que tudo no Brasil é esculhambado, inclusive a repressão política", afirmou, para risos da plateia.
"Uma vez, a polícia prendeu a turma do 'Pasquim' e o Ferreira Gullar. Quando iam pegar o Millor, o carro já estava cheio. Deixaram pra prender no dia seguinte. Ele soube e sumiu", relembrou, rindo.
O próprio Jaguar advertiu que não se deve levar muito a sério as suas lembranças: "Quando eu bebia não tinha amnésia. Agora tenho amnésia abstêmica. Embaralho tudo."
Ainda sobre a ditadura, Jaguar contou sobre o período em que foi preso. "Em 69, todo mundo foi preso. Me escondi na casa do Flávio Cavalcanti, eu e a Leila Diniz. O Paulo Francis ligou: 'Eles falaram que só soltam a gente se você se entregar. A sua consciência responde', disse o Francis. Nem tive o gostinho de ser preso, resistir à prisão. Paguei um táxi pra ir pra prisão. Lá na Vila Militar. Foi uma nota preta".
"Quando cheguei na porta da Vila Militar, parei. Fui no bar. Tomei um porre. Depois me apresentei. Fiquei três meses preso. Dizem que estou fazendo piada, mas foi o melhor período da minha vida. Levei 'Guerra e Paz'. Onde você vai ler 'Guerra e Paz'?", brincou, afirmando também que não foi torturado.
"Foi um período maravilhoso. E com pinta de herói. Quando saímos, as moças ficaram maravilhadas. Ziraldo não gosta que eu conte essa história. Eu subornava os guardinhas e eles me traziam cachaça. O coronel, que chefiava, dizia: 'não sei o que vocês fizeram, mas vocês são ótimos'. Eu tapava a mão para falar com ele por causa do bafo de cachaça. Foi todo mundo solto. Eu saí direto pro baile de Réveillon. Me deram tanta cachaça que eu só acordei três dias depois", contou.
Retornando ao homenageado da Flip, Jaguar observou: "O cara que eu mais admirei na vida foi o Millôr. O maior tradutor, o maior dramaturgo, o maior desenhista, o maior cartunista brasileiro. Só não é o maior poeta porque era inteligente demais para ser poeta."
Uma moça da produção mostra uma placa avisando que faltam apenas 10 minutos para o debate acabar. “Tudo isso?”, pergunta Jaguar. “Estou completamente sem assunto”. Reinaldo acrescenta: “Se o Millôr estivesse aqui, isso não aconteceria. Ele ficaria falando aqui sobre qualquer assunto. Por uma hora, sem parar.”
Millôr x Picasso
Mais cedo, dando início à programação, o crítico de arte Agnaldo Farias fez um exame dos trabalho do homenageado deste ano, o cartunista Millôr Fernandes.
Dizendo-se defensor do humor e da ironia, Farias comparou a arte de Millôr à de pintores como Joan Miró e Pablo Picasso, advertindo antes que a analogia poderia desagradar parte do público.
"Picasso tem a mão cirúrgica, precisa. Picasso humilha. Quem é capaz de fazer algo semelhante?", questionou o crítico, mostrando um desenho de Picasso, artista que colocou como alguém que faz os outros não quererem mais desenhar. "Quem tem esse traço? Millôr tem esse traço", afirmou, explicando que o cartunista brasileiro seria como uma versão de Picasso feita com a mão esquerda, a mão menos precisa e mais subversiva.
Na opinião de Farias, no entanto, a relação mais imediata da obra de Millôr se dá com Saul Steinberg, cartunista americano conhecido por seus trabalhos para a revista "New Yorker". "São gigantes discutindo. Millôr o tinha como referência, assim como Steinberg o teria também", afirmou.
O crítico também apontou como a obra de cartunistas é vista como algo menor. "O trabalho plástico de Millôr, Jaguar, Loredano é visto como uma categoria secundária, como a crônica é vista. A história da arte negligencia o trabalho de artistas como Millôr. Porque ele é bem-humorado", disse.
Farias acredita que o trabalho de Millôr no jornal "tinha muito mais impacto do que o de muito de nossos artistas expostos nos museus". Além disso, para ele, "o Brasil não faz por merecer os grandes artistas que têm".
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