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A surpreendente história de Marvel Moreno, a escritora colombiana "tão importante quanto García Márquez"

O livro "El tiempo de las amazonas" (O tempo das Amazonas), o segundo romance de Moreno, será publicado em março em Alfaguara - Divulgação/Alfaguara
O livro "El tiempo de las amazonas" (O tempo das Amazonas), o segundo romance de Moreno, será publicado em março em Alfaguara Imagem: Divulgação/Alfaguara

Daniel Pardo - Correspondente da BBC Mundo na Colômbia

02/02/2020 10h15

Será publicado em março o segundo e último romance da escritora, que morreu na pobreza e com sua obra questionada; recentemente, ela se tornou um bestseller. O que aconteceu?

O último romance de Marvel Moreno, uma escritora colombiana praticamente desconhecida e que, hoje, alguns especialistas consideram uma das principais autoras da Colômbia, estava arquivado.

Desde que ela concluiu o livro, um ano antes de morrer na pobreza em 1995, os direitos de "O tempo das Amazonas" se mantiveram reservados por duas de suas filhas e seu primeiro marido, Plinio Apuleyo Mendoza, um jornalista reconhecido de Bogotá e que, ao que parece, é a inspiração para um dos protagonistas.

"Ela pensou que estava sonhando", lê-se em referência a Luis nas primeiras páginas. "Uma pessoa que lia Marx e sabia lidar com os talheres, um partidário de Che Guevara aficionado por Proust, um esquerdista que se expressava com moderação."

Luis era o homem com quem Gaby, a personagem aparentemente autobiográfica de Moreno, sairia do âmbito retrógrado e elitista de Barranquilla, uma cidade portuária do norte da Colômbia em que Moreno nasceu. Mas em questão de meses, Gaby se deparou com o personagem mesquinho e tirano descrito nos capítulos seguintes do livro.

Essa crítica a Luis, segundo pessoas próximas a Moreno, fez com que "O tempo das Amazonas" permanecesse arquivado por 26 anos ?tese que Plinio Mendoza e suas filhas negam.

Mas, em março, a editora Penguin Random House publicará este segundo e último romance de Moreno. E o consenso entre o meio literário é que a publicação ocorre após três anos de pressão política e acadêmica.

Primeiro nível latinoamericano

De prosa fluida e sintaxe rigorosa, personagens cativantes e mulheres sempre protagonistas, além de uma crítica mordaz à alta classe caribenha em que nasceu, Marvel Moreno se transformou em um dos autores mais reconhecidos da literatura contemporânea colombiana.

Alguns dão a ela a relevância que tem Gabriel García Márquez: "É tão importante quanto Gabo, com a diferença de que tem uma produção curta e limitada", afirmou Fabio Rodríguez Amaya, editor de Moreno e professor de literatura da Universidade de Bergamo.

"Moreno inaugura a literatura latinoamericana do pós-boom e uma nova veia narrativa com a qual transcende os modelos do real maravilhoso e da narrativa urbana inaugurados, respectivamente, por Alejo Carpentier em Cuba, Jorge Luis Borges na Argentina e, na Colômbia, por José Félix Fuenmayor, Álvaro Cepeda Samudio e García Márquez".

Rodríguez Amaya conclui: "Com um aprofunda consciência do feminino ? nunca militou ou declarou ser feminista ? Marvel Moreno explora o sistema patriarcal e os modelos viciados, perversos e decadentes que dele se desprendem (machismo, homofobia, prostituição, violência de gênero, etc) como demonstração de que um mundo regido pelas relações de poder é um mundo sem amor.

Ela foi tão pioneira e influente como os grandes autores latinoamericanos argumentam os críticos. Mas o público colombiano, em geral, só conheceu sua obra 20 anos depois de sua morte.

Primeiro rainha, depois esquecida

Marvel Luz Moreno masceu em Barranquilla em 23 de setembro de 1939, em uma família abastada que sofria problemas econômicos. Enquanto a sua mãe a pressionava para cumprir com as regras tradicionais, o pai dela, um bem-sucedido advogado ativista, lhe ensinava literatura, música e pensamento progressista.

Ela foi expulsa de um colégio de freiras por defender as teorias evolucionistas de Darwin, foi a primeira mulher na faculdade de Economia da Universidade do Atlântico e aos 20 anos foi rainha do carnaval de Barranquilla, a festa folclórica mais importante do país.

Nos anos 60 ela se relacionou com o chamado grupo de Barranquilla, berço de importantes personagens da cultura colombiana, como o pintor Alejandro Obregón, o gestor cultural Germán Vargas Cantillo e o jornalista Álvaro Cepeda Samudio, em cuja principal obra, "A casa grande", Moreno foi leitora contribuinte.

Foi assim que ela conheceu Plinio Mendoza. Casaram-se em 1962 e tiveram duas filhas. Moreno teve um segundo matrimônio 20 anos depois, com o engenheiro Jacques Fourrier.

A publicação de cada livro gerou uma saga cheia de versões e conspirações, mas o resultado é que, em vida, Moreno apenas publicou duas compilações de contos ? "Algo tão feio na vida de uma senhora boa", em 1980, e "O encontro e outros relatos", em 1992 ? e um romance ? "Em dezembro chegavam as brisas", em 1987".

Se algun deles teve impacto, foi na Europa, onde ganhou dois prestigiosos prêmios e viveu seus últimos 30 anos de vida.

Mas na Colômbia, Moreno só começou a se transformar na escritora elogiada que poderia ter sido há 30 anos quando a editora Alfaguara ? não sem críticas ou truculência editorial ? publicou em 2013 "Em dezembro chegavam as brisas", uma novela que se conectou com um público jovem e os movimentos feministas.

"Talvez apenas eu entendesse que esse consumo frenético de homens escolhidos e devorados sem ternura ou compaixão era simplesmente a vingança que uma geração de mulheres exercia, sem saber, em nome de muitas outras", lê-se no livro.

Censuras, distância, doenças

A escassa divulgação da obra de Moreno na Colômbia, afirmou em várias oportunidades Plinio Mendoza, se deveu à distância e a certo medo de fracasso por parte da escritora.

"Marvel nunca soube qual podia ser o destino de sua obra", escreveu no jornal El Tiempo, em 2005. "Ela estava muito longe da Colômbia e, no entanto, sempre, em sua alma, muito perto de sua cidade natal, Barranquilla, para saber se seus livros teriam algum eco. Talvez ela duvidasse. "

Mas pessoas próximas a Moreno, como os escritores que a família designou como herdeiros de sua obra, Jacques Guillard e Fabio Rodríguez Amaya, apontam uma mistura de discriminações que incluem Plinio: "Desconhecida do grande público, ignorada pelos meios de comunicação, deturpada pelos editores, enviada e censurada pela cultura oficial e do regime, alvo de esnobismo de seus compatriotas famosos, hostilizada pela família, isolada pela doença, assediada pela pobreza, com tudo isso, com todos esses obstáculos, admira-se que tenha conseguido publicar três livros em vida", escreveram em 1997.

À equação que culminou no silenciamento de Marvel Moreno se adiciona uma grave doença de duas décadas, o lúpus; depressões largas e profundas em meio à asfixia econômica e uma morte precoce, aos 56 anos, por um efisema pulmonar.

A pressão de seus leitores e leitoras

A vida de Moreno foi estudada por dezenas de acadêmicos em busca de uma explicação para sua marginalização. Agora, talvez, tenham que se perguntar por que ela se tornou uma bestseller.

Em setembro de 2018, quando Plinio participava de uma fala sobre Moreno em uma feira do livro em Barranquilla, um grupo de mulheres estudantes interrompeu a cena, em silêncio, com camiseras brancas que diziam "É o tempo das amazonas".

"Nos parece terrível que este homem, que restringiu a publicação da obra completa de Marvel, foi quem falou de sua obra e que o entrevistador e o entrevistado só falaram de fofocas de sua vida pessoal, repetindo os velhos padrões do machismo", disse Mercedes Ortega, uma das manifestantes.

Plinio continuou com sua apresentação, e nas entrevistas, repetiu seus argumentos. "O livro não teve as correções necessárias (...) ela provavelmente concordaria com as filhas que ele precisava ser corrigido (para publicá-lo)".

Agora, O tempo das amazonas promete ser uma sensação editorial; 25 anos depois, a denúncia que seus pares interpretaram como literatura marginal se transformou em uma premonição que inspira a centenas de escritoras promissoras.

"Marvel não só foi uma denúncia de sentimento, mas uma amostra de que as mulheres também podem, com inteligência, liberarem-se e levarem a vida que querem", assegura Adriana Rosas Consuegra, professora de literatura da Universidade do Norte, em Barranquilla.

Mercedes Ortega, do movimento As Amazonas e também professora da Universidade do Norte, acrescenta: "O que Marvel escreveu e sua atitude de denúncia segue absolutamente vigente. Meus estudantes do primeiro ano se surpreendem de não haver conhecido antes a Marvel e dizem que sua história é a história de suas próprias vidas e famílias aqui em Barranquilla. E é gente muito jovem, poderia-se supor que as dinâmicas tenham mudado, mas isso segue muito ancorado na nossa idiossincrasia.

O machismo pode seguir ancorado na cultura barranquillera, colombiana ou latinoamericana. Mas agora convive com a denúncia, convertida em best-seller, de Marvel Luz Moreno.