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'Lovecraft Country' apavora ao expor monstros, magia e práticas racistas

George (Courtney B. Vance), Letitia (Jurnee Smollett) e Atticus (Jonathan Majors) em cena de "Lovecraft Country" - Divulgação
George (Courtney B. Vance), Letitia (Jurnee Smollett) e Atticus (Jonathan Majors) em cena de 'Lovecraft Country' Imagem: Divulgação

Mariana Tramontina

Colaboração para o UOL

16/08/2020 04h00

Estamos cercados de monstros!

A frase de Atticus Freeman (Jonathan Majors), o jovem negro e veterano da Guerra da Coreia em "Lovecraft Country" (nova série da HBO que estreia neste domingo, 16, às 22h), tem muitos significados.

Atticus é fascinado por histórias de pulp fiction (que misturam fantasia, terror e ficção científica) e por "heróis que partem em aventuras por outros mundos, desafiam adversidades, derrotam os monstros e salvam o dia", como ele descreve. Muito divertido quando tudo não passa de invenção.

Mas o que Atticus e sua família experimentam nessa série —uma adaptação do romance de Matt Ruff, escrita por Misha Green e com produção de Jordan Peele, de "Corra!", e J.J. Abrams, de "Lost"— é bem real. E apavorante. Nos dez episódios de cerca de 50 minutos cada, eles enfrentam muitos tipos de monstros, alguns deles míticos e outros bem reais, vivendo na América segregada da era Jim Crow.

Atticus (Jonathan Majors)  - Divulgação - Divulgação
Atticus (Jonathan Majors) e seu amor pela literatura
Imagem: Divulgação

O autor preferido de Atticus é H.P. Lovecraft, um dos maiores nomes da literatura de horror e criador do temido Cthulhu. A relação de Atticus com o escritor, um declarado supremacista branco, é intrigante: a admiração que o jovem sente por alguém que não aceita sua existência é a gênese da história negra.

Jonathan Majors - Eu cresci no Texas (EUA), em uma sociedade muito preconceituosa e racista. Não há muita coisa sobre racismo que eu não tenha tido como experiência. O medo é algo enraizado. O senso de proteção está impregnado.

Atticus, apesar de seu protagonismo, está longe de ser a única estrela. Nós conversamos com os atores Letitia (Jurnee Smollett), Montrose (Michael Kenneth Williams), George (Courtney B. Vance), Hippolyta (Aunjanue Ellis), que interpretam outros personagens que também se deparam com o sobrenatural em suas jornadas.

Jonathan Majors - Você pode não se identificar com alguns tipos de temores. Mas quando se adiciona monstros numa história isso faz com que aquilo seja universal, mais acessível, porque é desconhecido e o medo é algo que todo ser vivo experimenta.

Entre mistérios com ar de "Arquivo X" e aventuras com pegada de Indiana Jones, "Lovecraft Country" tem também o horror cósmico, com seres estranhos e indescritíveis, e elementos de ocultismo, como maldições ancestrais, sociedades secretas, livros proibidos, rituais e segredos de família. Tudo isso assusta. Mas não causa tanto pavor e paranoia quanto o preconceito e as limitações de locomoção, cultura e sociabilidade que os brancos impuseram aos negros ali —e a percepção de que muitas situações daquelas continuam a acontecer.

Michael K Williams - O fato de que ainda hoje, na vida real, estamos sofrendo com problemas que se originaram na escravagista era Jim Crow, é surreal.

Jurnee Smollett-Bell - É lamentável que esta série poderia ter sido lançada em qualquer dia, em qualquer mês, de qualquer ano desde 1619. E os temas que exploramos ali ainda seriam relevantes. Esse sistema não será desmantelado se não continuarmos o diálogo. E eu espero que "Lovecraft Country" seja parte dessa conversa, porque a arte é mais poderosa quando está contribuindo para o diálogo positivo sobre a humanidade.

O passado ainda é presente

Excluindo a parte fantasiosa, a série funciona como um documentário. A história se passa nos anos 1950. O racismo é institucionalizado não apenas pelos civis, mas pelas autoridades. A trama traz à tona as "sundown towns", cidades americanas que impunham restrições a não-brancos por meio de leis discriminatórias, intimidação e violência, proibindo a circulação após o pôr do sol.

Courtney B. Vance - É por isso que o Green Book [um guia que trazia os poucos hotéis e restaurantes que serviam afro-americanos na época] foi tão importante. Era como as pessoas conseguiam viajar e sobreviver.

A narrativa também expõe o "redlining", prática adotada por bancos e imobiliárias para estabelecer segregação habitacional através de leis de zoneamento de exclusão.

Jurnee Smollett-Bell - Isso explica porque, até hoje, poucas pessoas negras são proprietárias de casas: nós não herdamos casas das gerações anteriores, porque não podíamos obter empréstimos de bancos. O racismo está embutido no sistema da nossa nação em todos os níveis, educação, habitação, oportunidades.

Aunjanue Ellis - O tempo, em termos de questões raciais, é cíclico. É atemporal. Anti-racismo é como estações do ano: você tem momentos de sol e momentos de chuva, mas nunca vai acabar. Então a questão não é quando o racismo acabará. A questão é como lidamos com a realidade desse anti-racismo para que isso não tenha fim. Porque nossa ideia do que pensávamos ser passado é, na verdade, muito presente.

Letitia (Jurnee Smollett)  - Divulgação - Divulgação
Letitia (Jurnee Smollett)
Imagem: Divulgação

Jurnee Smollett-Bell - É por isso que me interessei tanto por fazer Letitia. Ela sofre dessa sensação de deslocamento como tantos negros americanos sofrem. Eu me identifico com esse sentimento. É um grande choque quando você descobre que o país onde você nasceu, e ao qual você deve sua identidade, não tem lugar para você. É um choque ancestral, 1955 é agora. O racismo sistêmico no qual nossa nação foi construída quer que sejamos apagados da história.

Michael K Williams - Eu também me vejo em várias situações de Montrose. Nina Simone disse uma vez que o dever do artista é refletir os tempos em que se encontram, então é uma honra para mim representar pessoas como eu. Ele é um homem negro lutando com sua identidade, e eu sei como é isso. Eu sou um homem negro na América e, contando essas histórias, me lembrou que eu tenho traumas, que ainda estou lidando com problemas.

Jonathan Majors - Atticus é um adorador de livros, é um filho, um amante. Ele se assemelha a George Floyd, a Freddie Gray, é um precursor destes homens. E agora vemos que o inimigo público número 1 de alguns dos departamentos de polícia dos EUA, que eles tanto vilanizam, também tem todas essas características dentro dele.

Michael K Williams - Eu espero que "Lovecraft Country" nos faça realmente dar uma olhada em como chegamos até aqui. Nada disso aconteceu da noite para o dia. Essa inquietação acontecendo no mundo hoje, os movimentos de Vidas Negras Importam, tudo isso vem de uma longa lista de coisas que deram errado há muito tempo.

Courtney B. Vance - Eu desafiaria qualquer um a lidar com o que os negros lidam diariamente. Ou qualquer pessoa trans. Qualquer pessoa que seja diferente e tem que navegar em um mundo no qual não é para você. Daí você começa a entender, entre aspas, o medo com o qual se lida todos os dias, o dano psicológico que está impactando você por gerações. E, apesar disso, ainda assim a gente se levanta.