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Moraes Moreira traduziu a vibração e a alegria do Brasil em tempos obscuros

Moraes Moreira - Marcus Leoni/Folhapress
Moraes Moreira Imagem: Marcus Leoni/Folhapress

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

14/04/2020 04h00

Morto nesta segunda-feira (13), aos 72 anos, Moraes Moreira sintetizou como poucos o som e a alegria do brasileiro em seu alto-falante —como aquele mesmo pendurado na praça principal de Ituaçu, município da Chapada Diamantina, na Bahia, onde cresceu ouvindo sucessos populares. "Quando eu era pequeno duas coisas me ligavam ao mundo e às emoções, o rádio e o alto-falante que tinha no interior", disse ao canal "Alta Fidelidade" em 2018.

O que saía do seu amplificador musical e afetivo animou muitos Carnavais e capturou a vibração natural do brasileiro, até mesmo quando essa energia parecia sucumbir no período mais obscuro da ditadura militar.

Enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil seguiam exilados em Londres, e o recrudescimento da censura atingia sem pudor jornais, canções e peças, Moraes, ao lado de Novos Baianos, abriu trincheiras de ânimo e brasilidade num terreno hostil e violento. Era como se tivessem invertido, dentro dos moldes hippies e anarquistas do grupo, o ufanismo propagado pelo governo militar na época. Foi como disse disse em entrevista a Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn em 2010:

Mesmo dentro da história da ditadura, da repressão, a gente acreditou que daria certo. Éramos aqueles malucos cabeludos. A gente teve a sorte de não nos acharem comunistas. Não sabiam o que a gente era. Então, a gente foi existindo.

As pessoas não entendiam como os Novos Baianos tinham tanta alegria na época do Brasil de chumbo, autoestima lá embaixo, os artistas eram meio tristes, mas nós não, éramos alegres.

No início dos anos 1970, porém, a banda ainda estava ligada na onda lisérgica do rock'n'roll de The Who, Jimi Hendrix e Janis Joplin. A virada se deu através dos encontros com o pai da bossa nova, João Gilberto, chamado por Moreira como "produtor espiritual" de "Acabou Chorare" (1972), clássico absoluto dos Novos Baianos, eleito o disco mais importante do Brasil em votação com especialistas feita pela revista Rolling Stone em 2007.

Em uma das visitas que fazia ao retiro dos baianos, na época, um apartamento em Botafogo, João pediu para ouvir melhor o som daquele "vaqueiro" barbudo. Era Moraes, que sacou logo uma composição nova, "Dê um Rolê". Com a levada do blues, a canção fazia referência aos passeios de carro que sua galera dava em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas quando descolavam um baseado.

João prestou atenção e disse: "Tá legal, mas vocês precisam olhar mais para dentro de vocês". Como fazia em todas as visitas, pegou o violão e cantou sambas de Ary Barroso, Herivelto Martins, Noel Rosa. Numa dessas, emendou "Brasil Pandeiro", samba do baiano Assis Valente em 1940, que conclamava o povo mestiço, como ele próprio, logo no primeiro verso: "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor."

A partir dali, tudo seria diferente. "A gente entendeu que ele queria que a gente colocasse mais brasilidade", relembrava Moreira. O trabalho de depuração duraria um ano, incorporando o cavaquinho e o pandeiro, sem perder o peso e a virtuose do rock, engendrando o que Moreira chamava de "sambas envenenados". Entre elas, "Brasil Pandeiro", com arranjo quase todo criado pelo grupo.

Em uma época que o Brasil estava triste, cinzento, a gente aparecia na maior alegria cantando músicas como: 'Besta é tu, besta é tu'. Ninguém entendia muito isso. E o João dizia assim: 'Olha como o Brasil é lindo'. Ninguém estava vendo aquele Brasil. Só ele. Começamos a incorporar esse Brasil

O disco passou por redescobertas importantes, entre os anos 1980 e 2000, ressoando com força num público mais jovem. "As letras são muito modernas", avaliava, ao observar a plateia cada vez mais nova em seus shows:

Era tudo afinado para caramba e não tinha afinador na época! A gente fazia a mistura de acústica e elétrico, tudo afinado. Nossa gravação do 'Acabou Chorare' é certinha. A música era levada a sério. Tinha loucura, tinha LSD, tinha tudo, mas na hora de tocar era sério.

Em dado momento, descobriu o lado negativo em se viver em comunidade. Já com dois filhos, desistiu de dividir o trabalho e a moradia com os integrantes. "Como aqueles meninos iam se alimentar se os caras tomavam o leite deles no mingau da larica?", disse em entrevista recente ao jornal O Globo.

Ainda cercado de parceiros, deu início a uma sucedida carreira solo em 1975, mesmo ano em que se tornou o primeiro cantor num trio elétrico em Salvador, onde até então Armandinho, Dodô & Osmar só tocavam músicas instrumentais. Da parceria nasceu "Pombo Correio", primeiro sucesso solo, que já sintetizava o ijexá nas cordas do seu violão e guitarra. Vieram outras, "Chão da Praça", "Eu sou o Carnaval".

Fã de Lamartine Babo, compôs marchinhas como "Bloco do Prazer" e "Festa do Interior", sucessos na voz de Gal Costa, em que a alegria e as raízes brasileiras eram festejadas em frevos "trieletrizados", ajudando a desenhar a forma como a gente segue os trios e os blocos na folia hoje.

O Carnaval baiano começa a ter projeção nacional, como um Carnaval superespecial, no qual as pessoas vão atrás do trio elétrico e não ficam só olhando. A partir de 1975, a gente começou a gravar discos. Colocamos a obra musical dos trios em discos. Entrei na história nesse momento. Dali em diante, virei o cantor do trio

No disco "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira", em 1979, deu uma guinada no som, que culminou na chamada axé music. De olho nas vibrações que saiam do chão (e em alto-falantes clandestinos), fundiu o batuque dos blocos afros e o frevo eletrizado pelos trios, em especial na música "Assim Pintou Moçambique", inspirando artistas até hoje, como o grupo BaianaSystem

"Foi emblemática. Caetano e Gil disseram na época que eu tinha conseguido fazer o que eles sempre sonharam. E a partir daí começou a se misturar o afoxé com o frevo e tal", observava.

A canção título do disco foi inspirada mais uma vez em João Gilberto, quando os dois passeavam de carro pelo Rio de Janeiro. Em frente a uma das famosas ladeiras da capital fluminense, avistaram uma moça negra, descendo com energia e força, rumo ao trabalho. "Olha lá, o Brasil descendo a ladeira", disse João.

A música parece trazer uma imagem dúbia, podendo soar como um comentário sobre a situação do Brasil à época. O mesmo se deu com o álbum de 1994, "O Brasil tem Conserto", em que revisitava canções acompanhado de uma orquestra. Para ambos os casos, ele dizia, dando dimensão de uma obra que olhava mais para a alegria do que para os problemas dos brasileiros:

É mais poesia que política.