Lizzo: 'Há dez anos morava no meu carro, ontem estava numa limousine'
O último ano parece ter sido difícil para muita gente, menos para Lizzo. Aos 31 anos, a cantora americana enfim conquistou o reconhecimento internacional, após uma década de batalha. Seu terceiro álbum, "Cuz I Luv You", foi o primeiro a sair por uma grande gravadora. A versão deluxe trazia uma faixa lançada originalmente três anos antes, "Truth Hurts", dos famosos —e polêmicos— versos "I just took a DNA test, turns out I'm 100% that bitch" (Acabei de fazer um teste de DNA, parece que sou 100% aquela 'bitch', em tradução livre). Assim, Lizzo finalmente chegaria ao topo da parada da Billboard e, pelo "pacote", ela abocanhou oito indicações ao Grammy, saindo do evento com três estatuetas a tiracolo.
Mas, para chegar até o Olimpo do pop, Lizzo fez "de um tudo". Estudante de música clássica, com foco na flauta —faculdade que ela abandonou, junto com a música, após a morte do pai—, Melissa Viviane Jefferson, como a cantora foi formalmente batizada, foi vocalista de uma banda de rock progressivo e integrou uma girl band inspirada nas Destiny's Child. De Mars Volta a Kanye West passando por Aretha Franklin e Queen, a artista bateu essas referências como um suco (pescou?) num grande liquidificador musical. Aqui, permita-me uma digressão:
De passagem pelo Brasil dias após ganhar seus primeiros Grammy para promover seu trabalho e fazer um show de apenas cinco músicas no YouTube Space, no Rio de Janeiro, a cantora recebeu jornalistas para uma bateria de entrevistas. Porta-bandeira do feminismo, Lizzo se irritou com quantidade de homens pautados para falar com ela (a ponto de comemorar quando apareciam repórteres mulheres), desferiu respostas atravessadas a perguntas capciosas e considerou ofensivo o comentário de um repórter argentino, que falava sobre sua cor. Quando a reportagem do UOL, última da fila, entrou no estúdio, foi orientada pela gravadora a evitar certos temas, já batidos naquele dia, como sua (geralmente ótima) relação com o corpo e sobre sua ligação com Prince, que apadrinhou sua carreira.
Durante o papo, porém, o nome do músico, morto em 2016, apareceu espontaneamente, justamente no meio do caldeirão de referências que Lizzo carrega, e se orgulha de carregar:
"Eu faço a música que é natural para mim, sabe? Posso adicionar elementos de todos esses ritmos... Rock, pop, rap, R&B. Como, por exemplo, na faixa 'Tempo'. É uma música que eu gravei 'apenas' com a Missy Elliott [diverte-se]. É uma música para dançar, da noite, e eu estou cantando rap nela. Mas achava que ela não entraria no álbum porque não combinava com o resto das canções", conta Lizzo. "Então resolvi colocar umas guitarras esmerilhadas em destaque, como o Prince em 'When Doves Cry', diz, imitando o solo com a voz poderosa e os olhos fechados, maquiados com sombra verde e amarela, em homenagem ao Brasil que a recebeu com amor e "caiprinhas". "Então adicionei a flauta e a faixa virou uma música da Lizzo".
Ela trata, inclusive, "lizzo" como um gênero musical próprio.
"Assim é o meu processo de compor uma música desse gênero, que é meu. Uma música não é uma música da Lizzo até ter um pouco de soul, um pouco de rock, um pouco de rap e até ter minha flauta clássica. Eu sou muito consciente disso, e se não tiver nada disso, sinto que não está certo."
A flauta, aliás, é seu instrumento inseparável e tem até nome e arroba no Instagram: Sasha. É acompanhada de Sasha e de uma "entourage" 100% feminina que Lizzo sobe ao palco de conjuntinho de cetim lilás, com direito a top cropped e unhas compridíssimas, para cantar que mulheres como ela (ou como você, leitora) podem, sim, ser presidentes ou simplesmente pegarem quem estiverem a fim. "Se vocês me amam, também podem se amar", diz entre uma música e outra, como um bordão.
"Eu posso falar sobre coisas muito sérias e corajosas. Mas, sabe, eu faço isso gargalhando. É apenas o que eu sou, não há nenhum segredo nisso, nenhum método. Não é intencional. É parte do meu DNA. Eu coloco minha personalidade na minha música", explica.
E foi essa receita que deu no que deu. Lizzo já vendeu mais de 500 mil discos (o equivalente ao disco de ouro, nos dias de hoje), foi eleita a artista do ano pela revista Time, esgotou ingressos de seus shows ao redor do mundo e viu sua "Truth Hurts" virar hino, meme e até alvo de processo, já que uma twitteira alegava ser dela a autoria de seu verso mais famoso. Tudo acabou resolvido após um acordo.
"Não dava para esperar que uma música minha fosse se tornar número um. Isso é coisa de maluco. Também não fiquei ansiosa. Eu estava mais para... 'quer saber, essas são minhas músicas, vai acontecer o que tiver que acontecer. Eu me contentava com a minha carreira e ficava ok com ela. Por isso que quando a 'Truth Hurts' cresceu e chegou ao primeiro lugar das paradas foi totalmente inesperado. Quando você espera demais pelas coisas, você tende a se decepcionar mais. E eu nunca me decepcionei com 'Truth Hurts'. Eu fui capaz de sentir orgulho pela trajetória da música justamente porque não me deixei afogar em expectativas", filosofa.
Lizzo, que chegou a morar num carro velho na época em que perdeu o pai e abandonou a faculdade, agora curte a fama...
Ainda estou tentando entender todas as mudanças que rolaram na minha vida. Eu tenho flashes daquela época. Ontem mesmo tive um flashback de um dia em que fiquei sem gasolina, não tinha dinheiro e tive que empurrar meu carro até uma calçada, ou um posto de gasolina. E isso aconteceu enquanto eu estava dentro de uma fucking limousine. No banco de trás. Com um motorista. E eu fico 'oh, meu Deus'. Muita coisa pode acontecer em dez anos.
... Mas com responsabilidade.
Sempre há algo mais a se fazer. Ter sucesso na música nunca foi, nem de longe, meu único objetivo. Eu quero ser bem sucedida como uma cidadã deste planeta. Acho que as pessoas que recebem este tipo de privilégio e acesso às coisas deveriam usá-los pelo bem maior. Eu acredito que só recebi isso tudo da vida para poder recompensar o mundo, e não só a mim. Tenho muitas ideias que quero transformar em iniciativas agora que tenho a plataforma e o dinheiro.
E ela diz isso maravilhada com a Lagoa de Marapendi, na Barra da Tijuca, cenário de nossa entrevista. "Isso parece uma tela, um filme, é bonito demais. Eu estou amando, amo o Brasil", diz, para em seguida completar: "Quero fazer minha parte, tudo o que eu puder, para ajudar esse planeta tão lindo. Olhe para isso", finaliza.
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