Dois Papas: o que há de verdade e ficção no filme de Fernando Meirelles
Dirigido por Fernando Meirelles, o drama Dois Papas, lança luz sobre a relação próxima entre os últimos dois pontífices da Igreja Católica: o alemão Bento 16 (Joseph Ratzinger, vivido por Anthony Hopkins) e o argentino Francisco (Jorge Mario Bergoglio, Jonathan Pryce).
Além de mergulhar no embate filosófico entre dois homens que representam duas alas opostas de uma igreja em conflito, o longa desvela histórias e expõe bastidores que por anos permaneceram na penumbra do Vaticano. São relatos em geral fiéis, mas a dramatização também se faz presente e é ingrediente importante do filme.
Veja abaixo o que é comprovadamente canônico e o que é apócrifo em Dois Papas, que tem roteiro de Anthony McCarten (Teoria de Tudo, O Destino de Uma Nação e Bohemian Rhapsody) e estreia hoje na Netflix.
Jorge Bergoglio terminou um noivado para virar padre?
Não. Um dos flashbacks de Dois Papas se volta à história da namorada de Bergoglio na juventude, uma mulher chamada Amalia, que conheceu na época em que ele trabalhava em um laboratório químico. Eles chegam a ficar noivos na história, mas o futuro papa rompe o noivado para seguir sua vocação e entrar no seminário, deixando a jovem arrasada.
Amalia Damonte existe de verdade, mas a história real é diferente. Eles foram namorados na infância. Em entrevista pós-conclave de 2013, Amalia afirmou que Bergoglio escreveu uma carta de amor a ela aos 12 anos, dizendo que, caso a relação não terminasse em casamento, ele se tornaria padre, o que de fato aconteceu. E o relacionamento foi rompido pelos pais, que desaprovavam o namoro, não por eles.
É verdade que ele entregou padres à ditadura argentina?
Não exatamente. Francisco liderava a ordem jesuíta na Argentina quando uma junta militar tomou o poder em 1976, Temendo o governo, ele de fato cooperou com oficiais, queimando livros de esquerda e tirando dois padres, Franz Jalics e Orlando Yorio, do trabalho da comunidade de Rivadávia e, em um segundo momento, os expulsando da ordem jesuíta, o que os deixou à mercê da repressão estatal. E ele se arrepende amargamente disso.
O filme não mostra, mas, segundo o livro Pope Francis: Untying the Knots, de Paul Vallely, Francisco deu referências para que eles pudessem ser protegidos da ditadura por um bispo local, mas Yorio revelou que elas não tiveram resultado. Tanto Jalics quanto Yorio perderam suas licenças para celebrar missas, sendo perseguidos, presos e torturados pelo regime.
No longa, em uma cenas mais emocionantes, Bergoglio abraça Jalics em uma missa, indicando que o padre havia perdoado o futuro papa, o que bate com o relato de outro jesuíta citado no livro de Valley. Quando Francisco foi eleito papa, em 2013, Jalics emitiu uma declaração negando que Bergoglio o tivesse entregado às autoridades junto de Yorio.
Ratzinger acobertou mesmo casos de pedolifia?
O caso é real. Em uma passagem do filme com o áudio intencionalmente abafado, Ratzinger confessa que sabia do caso de Marcial Maciel Degollado, um influente padre mexicano que assediou garotos por décadas. No final dos anos 1990, Degollado foi acusado de assédio sexual por nove homens, que revelaram o escândalo entrando com uma ação formal no Vaticano.
Quando o crime aconteceu, a Congregação para a Doutrina da Fé, então sob liderança de Ratzinger, falhou em processar Maciel, que só foi forçado a se afastar do ministério anos depois, quando Bento 16 já havia assumido o pontificado. E o pior: a Igreja o denunciou apenas em 2010, dois anos depois de sua morte. Em dois Papas, Bergoglio se mostra surpreso ao saber da negligência de Ratzinger, apesar de já saber sobre os abusos.
Ratzinger toca piano e é viciado em Fanta?
Sim, e ele costumava tomar um copo do refrigerante quando tocava piano, outra de suas paixões. O blog The Young Catholic revela a história do dia que um bispo ofereceu ao papa uma caixa da cerveja britânica Holy Grail, mas descobriu que Sua Santidade preferia beber pelo menos quatro latas de refrigerante por dia. Mas por que Fanta? Provavelmente por ser uma bebida que fez parte de sua juventude, já que era fabricada originalmente na Alemanha.
Mas não se engane: a cena em que Bento e Francisco comem pizza e tomam Fanta escondidos na famosa "sala das lágrimas" da Capela Sistina, o lugar mais íntimo e solitário do conclave, onde o novo papa se veste pela primeira vez, é ficcional. Ela também não foi filmada totalmente na sala real, mas em um cenário que a reconstituiu fielmente, já que o Vaticano limita filmagens no recinto, considerado sagrado.
É verdade que Francisco relutou em ser papa?
É, principalmente durante o conclave de 2005, que elegeu Ratzinger. E o filme ainda pega leve. Apesar da insistência do cardeal Carlo Martini, colega do argentino na ordem Companhia de Jesus, Bergoglio considerava que sua contribuição à Igreja já havia sido concluída. Na vida real, a julgar por suas entrevistas, Francisco estava ainda mais descrente de era a pessoa correta para ocupar cargo. No primeiro conclave, quando disputou com Ratzinger, ele inclusive incentivou cardeais a votarem no alemão, apesar de suas divergências ideológicas.
Os papas se encontraram mesmo no Castel Gandolfo?
Sim, mas não como no filme, que tem como norte uma reunião secreta entre Ratzinger (então papa) e Bergoglio (ainda cardeal) em 2012. O encontro começa no Palácio Apostólico do Castel Gandolfo, residência de verão do papa. Desiludido, Bergoglio pede ao pontífice que lhe conceda aposentadoria antecipada, mas a solicitação é entendida como ato de insubordinação, resultando em um debate filosófico sobre o dogma católico. Ratzinger personifica a tradição e Bergoglio, modernização da Igreja.
É fato: os dois tiveram, sim, pelo menos uma reunião confirmada em Gandolfo, mas ocorrida em 2013, após renúncia de Ratzinger, quando Bergoglio já havia se tornado papa.
E a partida de futebol?
Outra cena, que mostra os papas assistindo pela TV à final da Copa de 2014, disputada entre Argentina e Alemanha, países dos dois, também é improvável. O roteirista Anthony McCarten já afirmou em entrevista ter visto uma foto dos dois assistindo TV juntos, o que o levou a vislumbrar a possibilidade terem se encontrado para assistir à partida.
Papa Francisco rejeita sapatos vermelhos?
Sim. Era uma atitude política. No longa, antes de renunciar dando lugar a Francisco, Bento 16 faz comentários nada elogiosos sobre o estilo do colega, afirmando que os sapatos pretos usados por ele são uma crítica às tradições da Igreja. O argentino aparece ainda rejeitando um requintado par de sapatos vermelhos, mesmo modelo usado pelo alemão.
A diferença de estilo também era simbólica: representava a discrepância de pensamento entre eles. Um conservador, outro progressista. Cabe lembrar que os papas usavam vermelho até meados do século 16, quando o papa Pio mudou as vestimentas para o branco, com exceção da capa vermelha, chapéu e sapatos. Ciente disso, Francisco costuma ser flagrado usando calçados pretos, irritando a ala conservadora católica.
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