Dois papas é um filme poderoso de Fernando Meirelles, que orbita o vácuo que existe dentro e entre dois homens, Papa Bento XVI (J. Ratzinger, interpretado por Anthony Hopkins) e o futuro Papa Francisco (M. Bergoglio, interpretado por Jonathan Price).
O filme conta com três estágios de intensidade psicológica crescente, além de diversos andamentos paralelos que dão contexto e ajudam a manter o ritmo.
O estágio inicial parece ter sido especialmente concebido para dialogar com o grande público, que é inserido num debate acalorado - e por vezes hilário - onde os pontos de vista defendidos pelos dois religiosos emulam as grandes dicotomias do mundo atual. Bergoglio é o típico humanista que "não pode vender um produto que não endossa", enquanto Ratzinger é o tradicionalista que culpa "o relativismo e a permissividade" pela queda no número de católicos, a qual é a maior entre as religiões de grande porte nos Estados Unidos e em alguns outros países estratégicos para as principais religiões.
Ambos são inquestionavelmente sagazes, porém Bergoglio é mais atraente sob todos os pontos de vista, o que converge à sensação de que o filme irá nos deixar na zona de conforto para assistir como o tempo se encarregou de trazer um pouco de frescor para uma instituição erodida por escândalos financeiros e sexuais.
Contrariando esta hipótese, o desenvolvimento da trama converge na ideia de que Ratzinger é uma figura muito mais profunda e intrincada do que subsumido. Assim atingimos o segundo estágio do filme, que lança luz sobre a vida íntima do único papa a renunciar em 600 anos.
Ratzinger encarna o último representante do idealismo alemão - um homem que conhece a realidade a partir da leitura e trata de música a partir da técnica, mas que ao mesmo tempo reconhece a insuficiência de sua relação com a vida tão profundamente, que se dispõe a renunciar a tudo o que sempre quis.
Há uma grandeza de caráter que se mostra pelo que se nega, enquanto o personagem interpretado por Hopkins ecoa "A morte de Empedocles" (Hölderlin, 1797-1800), poema dramático sobre o estadista e filósofo grego que aspira ser mais do que um simples mortal e, por isso, lança-se nas crateras do Monte Etna - um homem que precisa morrer para que um novo período floresça. O efeito é de grande envergadura, levando a audiência a simpatizar com ele, a despeito de qualquer divergência de ideias.
Sentir pena de Ratzinger reforça a hipótese latente de que Bergoglio é o antídoto perfeito ao seu caráter intrincado, com o qual não queremos nos envolver, uma vez que inspirados (este recurso se chama "priming") pelo prazer hedônico - de belas tintas sul-americanas - do entretenimento esbanjado ao longo do primeiro estágio do filme.
O cardeal argentino gosta de futebol, que doce; por vezes não consegue escutar a voz de Deus, que sincero; ele dança tango "com alguém", que amor de pessoa. Em sua humanidade irredutível, Bergoglio é o contraponto adorável à solidão misteriosa que consome Ratzinger, para quem o público indica - como um coro ancestral - "descanse em paz".
Não tão cedo. Bergoglio carrega uma realidade interior muito mais sombria do que aparenta. Ele foi parcialmente conivente com a ditadura argentina e se sente responsável pelas torturas horríveis e assassinatos perpetrados contra seus colegas jesuítas, que não soube proteger. Bem-vinda ao terceiro estágio, o qual descortina um drama psicológico de rara sofisticação, sobre aquilo que é preciso para uma pessoa de fato se perdoar.
Enquanto a sociedade civil argentina contabilizava os impactos da ditadura, Bergoglio teve que se retirar de Buenos Aires, exilando-se na Congregação Jesuítica de Córdoba, onde por dois anos habitou um quarto que mais parecia uma solitária, proibido de dar sermões e mesmo de fazer ligações telefônicas sem autorização.
Ele pagou por seus erros de maneira prática e adquiriu hábitos simples, que anos depois o tornaram icônico. Ainda assim, nunca conseguiu se reunificar internamente.
Está bem estabelecido que podemos escrutinizar nossas fraquezas profundas e, do seu confronto, extrair alívio e redenção - isto funciona posto que internamente dirigido.
A questão toda é que Bergoglio não tomou este caminho. Para ele, a terapia teve formato de punição, a qual não serve de motor para os processos de reintegração existencial, mesmo quando produz mudanças comportamentais que apontam nesta direção e se tornam definitivas.
Bergoglio, enfim, endossou seu exílio como uma oportunidade de se tornar uma pessoa mais dedicada aos sofrimentos do sujeito comum - o que provavelmente foi motivado por sua disposição e repertório para dar formato à culpa - porém, isto não foi suficiente para que atingisse o estágio de expurgá-la, uma vez que sua estadia em Córdoba traduzia a dissonância que se estabeleceu em relação àqueles que o viam como o perpetrador de uma grave falha moral - a qual se entronizou, como se vestida em tecido impuro, entre ele e o papado.
Enquanto nos preparávamos para jogar a toalha em prol desta insuficiência, eis que a cura psíquica de Bergoglio entra em cena por meio de um ato humildade de Ratzinger, que pede para se confessar com o colega. Ao ter que oferecer o Sacramento do Perdão ao Papa, ele se vê impedido de negá-lo a si mesmo.
E assim é que o atormentado cardeal sul-americano encontra um caminho para liderar uma religião baseada em pecado, confissão e perdão. Ficção? Talvez, mas sublime.
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