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Com veto de Renato Aragão, documentário dos Trapalhões sofre para ir ao ar

"Os Trapalhões" Zacarias, Mussum, Didi e Dedé vestidos na paródia do seriado americano S.W.A.T., apresentada no final dos anos 70 - Divulgação
"Os Trapalhões" Zacarias, Mussum, Didi e Dedé vestidos na paródia do seriado americano S.W.A.T., apresentada no final dos anos 70 Imagem: Divulgação

Raíssa Basílio

Colaboração para o UOL

11/12/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Rafael Spaca quer lançar o documentário Trapalhadas Sem Fim
  • O projeto conta a história de Os Trapalhões
  • No entanto, Renato Aragão não gostou da ideia e se recusou a participar
  • Didi e outros nomes, como Xuxa, também se recusaram a dar entrevista para o documentário

Um dos programas humorísticos mais famosos do Brasil, Os Trapalhões seguem em evidência até hoje. Mesmo sem a presença de Mussum e Zacarias, que já morreram, as pessoas não se esquecem do quarteto que contava também com Didi e Dedé. Mas a tentativa de contar a história dos humoristas virou uma confusão longe dos holofotes.

Um documentário produzido por Rafael Spaca, autor dos livros As HQs dos Trapalhões e O Cinema dos Trapalhões, virou um imbróglio. O projeto Trapalhadas Sem Fim deve ser lançado em 2020, isso se Renato Aragão não impedir.

Desde que Spaca deu início ao trabalho, o humorista tem sido contra a ideia de documentar a trajetória dos Trapalhões e vem se recusando a participar do projeto. Dedé, em solidariedade ao amigo, também não é a favor. Logo, o filme não contará com entrevistas dos dois, que são os únicos vivos do elenco principal do programa —Zacarias morreu em 1990, e Mussum, em 1994.

O diretor do projeto escreveu uma carta falando dos problemas que vem enfrentando para tentar realizar, concluir e lançar o documentário. E, em conversa com o UOL, disse estar chateado com a situação, principalmente pelo fato de ser fã de Renato Aragão e de Dedé Santana.

Spaca afirma que sente "falta de reconhecimento" do documentário por parte da dupla e destaca ainda que vem encarando tentativas de obstrução do projeto, que pretende apresentar o outro lado de Os Trapalhões. O filme deve reunir erros de gravações do programa, imagens de acervo da Globo, TV Tupi, Record e também entrevistas com mais de 60 personalidades, incluindo Pelé.

"Nasci em 1980, então, peguei uma fase muito legal do grupo. Eles eram meus heróis de infância e, de maneira enfática, direcionaram minha carreira, de certa forma. Sou radialista, jornalista, escritor e, agora, documentarista. Senti falta de uma bibliografia deles e resolvi fazer do quarteto o meu objeto de pesquisa", conta.

A princípio, ele conta que não pensou em fazer um filme. Suas ideias iniciais eram apenas livros. "Este documentário complementa e alimenta as minhas pesquisas anteriores, mas, por se tratar de um produto audiovisual, seu alcance é muito maior", explica Rafael Spaca.

Segundo ele, a história de Os Trapalhões é "conhecida até a página 5". "Esse documentário vai mudar a maneira como as pessoas veem o grupo. Estamos tentando nos aproximar da verdade. É muito mais próximo da realidade do que tudo o que já foi feito e falado na imprensa, até porque nunca as pessoas se abriram tanto e sem amarras para falar disso", completa o diretor.

A assessoria de imprensa de Renato Aragão afirmou ao UOL que devido a "obrigações contratuais, [Aragão] não irá se manifestar sobre outros trabalhos, não autorizados, que tratem de sua vida". E que "infelizmente, há, no mercado, pessoas que alegam ter autorização de Renato Aragão para falar dele, o que, contudo, não corresponde à verdade".

Quanto à reação de seu ídolo, Rafael Spaca se diz bastante chateado. Há uns anos, para o lançamento de O Cinema dos Trapalhões, o humorista chegou a dar uma entrevista para o diretor.

"Ele elogiou a pesquisa e me parabenizou pelo livro. No primeiro encontro, se deixou à disposição para projetos futuros", conta. Mas infelizmente, o ator nunca mais colaborou com os trabalhos seguintes de Rafael Spaca e, de acordo com ele, fontes próximas de Aragão contaram que o ator está bem irritado com o produção do documentário.

"Fiquei triste por ele não me dar essa chance de contar o relato dele", afirma o diretor. Ele diz também que não entende o que motiva essa resistência do humorista. "Fico sem saber o que é. Se fosse lançado, ele visse e falasse que é ruim... Mas ele ainda nem viu."

"O fato é que o documentário passou a ser 'perseguido' por Renato Aragão. Até uma conta no Instagram assinada pela sua esposa, foi criada para - de certa maneira - invalidar o nosso trabalho dizendo que ali se encontraria a verdadeira história do grupo. Postura mais arrogante impossível", escreve Spaca, na carta que o UOL publica hoje com exclusividade.

E ele não foi o único a ficar fora do projeto: "Renato Aragão cerceou meu trabalho pedindo para que Dedé Santana e Xuxa Meneguel, por exemplo, não falassem para o documentário". A assessoria da apresentadora não quer o envolvimento de Xuxa nessa questão, e Dedé, procurado, não respondeu.

"Renato Aragão é um artista genial, um excelente produtor e empresário. Sua imagem institucional, porém, é uma variante da que tenta transmitir."

O diretor reclama da censura de um dos principais personagens da história. "Vivemos em uma democracia, não cabe mais a censura, a ameaça judicial, a força do poder econômico como método de intimidação. Nessa sucessão de trapalhadas sem fim de Renato Aragão e seu estafe, a sua imagem fica ainda mais arranhada. Notem a quantidade de comentários negativos que são postados a cada matéria que sobre isso".

Ainda assim, Rafael Spaca pretende continuar com o projeto, que não foi finalizado. "Em casos assim, não se pode recuar. Por mais que, antiteticamente, ele tenta sabotar o trabalho legítimo de uma equipe, vou com esse documentário até o fim. Que a Justiça esteja a serviço da liberdade de expressão", conta.

O Trapalhadas Sem Fim deve ser lançado em "todas as plataformas possíveis", segundo Spaca, em 2020.

Confira abaixo o trailer e, na sequência, a íntegra da carta escrita pelo diretor.

"Pesquiso Os Trapalhões há mais de dez anos. Sentindo falta de uma bibliografia mais robusta a respeito do grupo, incomodado, resolvi fazer do quarteto o meu objeto de pesquisa.

Não há no mundo um grupo de humor, um trio, uma dupla ou um comediante que tenha em seu currículo os feitos do grupo brasileiro. Não digo que foram os melhores, mas o mais exitoso. Foram dezenas de filmes —chegaram a ter seis das dez maiores bilheterias do cinema nacional; campeões de audiência na televisão, nos quadrinhos, no circo e até mesmo na música, onde venderam diversos discos. Quem, por tanto tempo e em praticamente todas as plataformas de comunicação e cultura, fez o que o grupo fez?

São, no mínimo, três gerações de brasileiros que os têm em sua memória afetiva.

Natural a minha especulação intelectual para tentar compreender esse fenômeno cultural, artístico, pop e cult chamado Os Trapalhões.

Depois de longos oitos anos de pesquisa, lancei o livro O Cinema dos Trapalhões, por quem fez e por quem viu (Editora Laços, 2016). Este livro é um conjunto de 132 entrevistas com técnicos e artistas que trabalharam com o grupo no cinema. Em fevereiro de 2016, quando o livro estava indo praticamente para a gráfica, após anos de tentativa infrutífera indo pelo caminho natural via assessoria de imprensa do artista, consegui entrevistar Renato Aragão —graças à atitude de uma sobrinha dele.

Renato Aragão me recebeu com muita simpatia e respondeu a todas as minhas perguntas. Elogiou meu conhecimento a respeito do grupo e disse que estava à minha disposição para pesquisas futuras.

No ano seguinte, lancei As HQs dos Trapalhões (Editora Estronho, 2017). Ao pedir sua entrevista para esta pesquisa, fui ignorado. Não entendendo, mas respeitando seu posicionamento, lancei o livro com um lindo prefácio de Dedé Santana e depoimento de dezenas de profissionais de diversos setores que narraram a engenharia do quarteto na nona arte.

Em 2017 o jornalista Rodrigo Fonseca lançou a biografia Renato Aragão - Do Ceará para o Coração do Brasil (Editora Sextante). Neste livro, tive a oportunidade de contribuir com dois depoimentos, e meus dois livros são citados como fonte bibliográfica. No lançamento, ao ser perguntado a respeito do livro (Programa Vídeo Show, TV Globo, de 6/12/2017), Renato Aragão falou: 'Eu tenho que fazer, senão alguém faz por mim'.

Essa pequena frase diz muito sobre o que se passa na cabeça de Renato Aragão. Visão de um lado só, as outras não valem!?

Em julho do ano passado, comecei, com uma equipe aguerrida, a produzir o documentário a respeito do grupo, Trapalhadas sem Fim. Este documentário complementa e alimenta as minhas pesquisas anteriores, mas, por se tratar de um produto audiovisual, seu alcance é muito maior. Comecei as gravações com a atriz Regina Duarte e as encerrei com o Rei Pelé.

Ao todo são 65 entrevistados, muitos dos quais não tinha conseguido entrevistar anteriormente, o que dá um perfume diferente para este trabalho. São pessoas das mais diversas áreas —do dublê ao diretor—, que efetivamente trabalharam e acompanharam o quarteto em diversas fases.

Neste hiato, apresentei o projeto completo para o Renato Aragão e pedi sua entrevista. No começo, me ignorou sumariamente e, no transcurso, à medida que ia insistindo no pedido da entrevista, comecei a receber 'ameaças'. A última delas, assinada pela esposa do comediante, dizia: 'Mais uma vez informamos —e deixamos claro— que não autorizamos a realização de documentário referente aos Trapalhões.

Aqui um parênteses que exemplifica a arrogância: no começo deste ano, antes de o documentário ganhar essa proporção, um renomado jornalista o entrevistou em sua casa e perguntou a ele a respeito do meu projeto. Com a maior dissimulação, disse que não sabia de nada e que, por isso, não poderia responder. Agora que o documentário ganhou mídia, foge das perguntas.

Seu advogado chegou a me telefonar pedindo os arquivos de vídeo para que Renato Aragão pudesse assistir aos depoimentos e se posicionar. Esse pedido descabido foi rejeitado para proteger os meus entrevistados de qualquer intimidação. Respondi dizendo que a melhor forma de se posicionar era me receber para uma entrevista e que me comprometeria a colocar na íntegra todas as suas respostas. O que também não foi aceito por ele.

O fato é que o documentário passou a ser 'perseguido' por Renato Aragão. Até uma conta no Instagram, assinada por sua esposa, foi criada para, de certa maneira, invalidar o nosso trabalho, dizendo que ali se encontraria a verdadeira história do grupo. Postura mais arrogante impossível.

Renato Aragão cerceou meu trabalho pedindo para que Dedé Santana e Xuxa Meneguel, por exemplo, não falassem para o meu documentário.

Ao se indispor com uma equipe honesta e trabalhadora, criou um marketing espontâneo às avessas e fez do nosso trailer um dos mais vistos de todos os tempos em se tratando de documentário brasileiro. Desde que o trailer foi lançado, o documentário ficou em evidência na mídia. Fomos destaques nos principais jornais, revistas, sites, programas de rádio e televisão.

Vivemos em uma democracia, não cabe mais a censura, a ameaça judicial, a força do poder econômico como método de intimidação. Nessa sucessão de trapalhadas sem fim de Renato Aragão e seu estafe, a sua imagem fica ainda mais arranhada. Notem a quantidade de comentários negativos que são postados a cada matéria que sai a seu respeito.

Renato Aragão é um artista genial, um excelente produtor e empresário. Sua imagem institucional, porém, é uma variante da que tenta transmitir.

Ao se recusar a dar um depoimento ao seu parceiro Dedé Santana em programas que o homenageiam, em nem ao menos responder a outros convites de entrevistas ou participação, ao tentar censurar um documentário que dá voz a testemunhas oculares da história do grupo, Renato Aragão cria uma onda de antipatia em torno de sua persona.

Em casos assim, não se pode recuar. Por mais que antiteticamente ele tente sabotar o trabalho legítimo de uma equipe, vou com esse documentário até o fim. Que a Justiça esteja a serviço da liberdade de expressão.

Para encerrar, me aproprio e acrescento o que meu amigo Zé Andrade, artista como ele, disse:

O artista que sempre propagou o riso, a irreverência, a iconoclastia e a liberdade, agora envelhece mal e tenta censurar e calar outros desumanamente quando humanamente deveria rir, como sempre, de si mesmo como o seu personagem Didi Mocó sempre fez. Triste morrer ainda vivo!"

Rafael Spaca é diretor do documentário e da série Trapalhadas sem Fim