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Muito além de Zé do Caroço: Leci Brandão e seu amor pelo samba

Leci Brandão anima avenida em ensaio técnico da Acadêmicos do Tatuapé Imagem: Nelson Antoine/UOL

Djalma Leite de Campos

Colaboração para o UOL, em São Paulo

03/12/2019 04h00

Um samba cantado por Jamelão já fez Leci Brandão se emocionar, a ponto de chorar. Em entrevista ao UOL, a sambista e deputada estadual (PCdoB-SP) relembra o momento, que aconteceu durante sua infância no Rio de Janeiro.

"Minha casa tinha um disco de vinil de 78 rotações, e nele havia uma música chamada `Samba é Bom Assim´ (Norival Reis e Helio Nascimento), interpretada pelo Jamelão (1913-2008). Essa música tocava muito na minha casa... Como toco meu pandeirinho no estilo partido-alto, já abri até shows meus com este samba".

Leci cantarola a letra: "Para mim, samba é bom quando é cantado assim."

Aos 75 anos, Leci relembra outro detalhe que marca ainda mais sua relação afetiva com a música do cantor que foi intérprete da Estação Primeira de Mangueira entre os anos de 1949 e 2006: José Clementino Bispo dos Santos, o Jamelão, trabalhou ao lado de sua mãe, Dona Lecy - falecida em julho passado.

"Ele eram operários da mesma fábrica de tecidos em Vila Isabel (Zona Norte do Rio de Janeiro). Fico emocionada porque eu jamais poderia imaginar que um dia eu seria artista como ele. Sequer pensei que teria uma carreira. E, quando este sonho aconteceu, lembro de ter cantado este samba".

Ao buscar músicas do gênero que despertaram a mesma emoção, Leci cita ainda "Kizomba, Festa da Raça". O samba-enredo, aquele dos versos "Valeu, Zumbi / O grito forte dos Palmares", ajudou a dar a Unidos de Vila Isabel sua primeira vitória no carnaval carioca. "Também mexeu muito comigo", diz ela.

"Em 1988, eu atuava como comentarista de Carnaval da TV Globo. Ao ver a escola na avenida, com todo mundo vestido de branco e alegorias feitas de palha... Fiquei extremamente emocionada! Nunca mais esqueci."

O desfile da Vila - um dos mais emblemáticos da história do Carnaval - ficou marcado pela criatividade da escola para driblar problemas financeiros. "Eles não tinham dinheiro para fazer o desfile. A presidente da escola, a Russa (ex-esposa de Martinho da Vila), conseguiu fazer com que o povo usasse panos brancos, lençol e até pano de prato para desfilar. E fez da Vila a campeã daquele Carnaval."

Zé do Caroço, sempre atual

Trinta e quatro anos após o lançamento de seu maior hit, Leci observa que a letra de "Zé do Caroço" segue atual e ainda preserva o mesmo frescor. Escrita em 1978 - em meio ao período da Ditadura Militar - e gravada apenas em 1985, a faixa, dos versos "É que o Zé põe a boca no mundo / É que faz um discurso profundo / Ele quer ver o bem da favela / Está nascendo um novo líder / No morro do Pau da Bandeira", segue como carro-chefe dos shows da cantora.

"É uma música que traduz muito a realidade, e mantém o sentido que tinha quando a escrevi. `Zé do Caroço´ é a mais cantada nos meus shows, e segue atualíssima. Se tivesse que reescrevê-la, não mudaria nada", diz a cantora, que teve a faixa regravada pela cantora Anitta e o duo de música eletrônica Jetlag neste ano, além de ter sido trilha sonora do longa Tropa de Elite II (2010).

Apesar da potência e atualidade de seus versos, Leci admite que o samba deixou de ser o porta-voz das questões sociais da população. "Quem canta o social hoje em dia são os meninos do rap. Eles falam da realidade das periferias. E digo isso há um bom tempo." Ela acredita que a mídia não assimila bem ritmos e artistas que falem "a verdade", como aconteceu com ela própria ao lançar seu maior sucesso.

Em seu terceiro mandato consecutivo como deputada estadual, a carioca diz que a carreira política se sobrepôs aos palcos. "A minha prioridade hoje é o Parlamento, é a Assembleia Legislativa. Tenho que atender todo o Estado de São Paulo. Sou a única deputada do meu partido."

O samba é felicidade, identidade e família. Quando a gente canta samba, estamos sempre felizes

Samba puro

No meio do papo, Leci faz referência ao versos de "Agoniza Mas Não Morre", de Nelson Sargento, para falar sobre o futuro do samba. "O samba nunca morre! É a música da alegria. As modas sempre passam, tudo o que está aí acaba. O samba fica. Futebol e samba são paixões do povo."

A sambista prefere restringir o uso de novas tecnologias apenas a algumas partes do processo de produção dos álbuns e DVDs. "O samba que eu canto tem cavaco, violão, surdo, pandeiro e tantã. Só isso. Tem contrabaixo também, mas procuro fazer o canto dentro da formação de samba de raiz".

"No meu show, não tem sampler, e nem sei o que é isso. É autêntico, e é legítimo! Não uso nem ponto no ouvido. Tenho labirintite. E, se utilizar este aparelho, vou cair no palco. Meu show tem que ter retorno. Pode rir, mas é sério. Não uso nada disso, não."

Família Mangueirense

Primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, em 1972, Leci resgata ainda memórias de desfiles a que assistia ainda na avenida Presidente Vargas, centro do Rio, e que também ficaram registrados em sua memória. O período coincide com o início de sua paixão pelo samba.

"Assisto aos desfiles das escolas de samba desde quando era muito pequena. Estava sempre ao lado da minha mãe e da minha avó, que também eram mangueirenses."

Outra imagem de Carnaval surge na lembrança da compositora. "Tem ainda um outro desfile muito marcante: a Mangueira desfilou com o samba-enredo `Cântico à Natureza´ (1955), de Nelson Sargento. Lembro perfeitamente de um carro alegórico que tinha uma laranja e, em cada gomo da fruta, colocaram uma menina. E eu estava lá assistindo..."

Após 44 anos de carreira, ela agradece ao gênero que a consagrou. "O samba é felicidade, identidade e família. Quando a gente canta samba, estamos sempre felizes. Meus pais sempre cantaram samba em casa, e por isso tem que ter sempre um samba para a gente ouvir."

* Esta entrevista faz parte de uma série de reportagens que será publicada pelo UOL para celebrar a Semana do Samba. Fique ligado!

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