Laerte sobre filme: "SP é o centro da bagunça que está virando o Brasil"
São Paulo está em frangalhos. O Brasil também. Enquanto o presidente conservador tenta apenas aniquilar um Minotauro, metáfora para transgeneridade, a cidade e o país vivem o caos com piratas tocando todo tipo de terror. O cidadão comum sofre, e quem tenta dar sentido a tudo isso, enfrentando um câncer e um motim da própria equipe, é o diretor gaúcho Otto Guerra.
Você pode até não ter entendido muito bem o parágrafo acima, que descreve (ou tenta) o longa A Cidade dos Piratas, inspirado na obra de Laerte, mas a confusão é proposital. O filme com os personagens da tirinha Os Piratas do Tietê, que estreia hoje nos cinemas, é fragmentado, excêntrico, metalinguístico e acima de tudo uma dura crítica ao Brasil de hoje.
Com narração de Marcos Ricca e Matheus Nachtergaele, demorou 25 anos para ser concluído, entre idas e vindas da produção e da vida de Laerte, que agora vê seus personagens tomarem novas dimensões no espaço e tempo, com os quais, muitas vezes, nem ela se identifica.
Para entender melhor sobre o caos e a vida de A Cidade dos Piratas, basicamente a mesma de todos que vivem em grandes cidades, batemos um papo com a cartunista.
UOL - O filme do Piratas é sobre sua obra ou sua vida?
Laerte - É a obra. É baseada nos meus quadrinhos. É que de uma certa forma esses assuntos se misturaram. Principalmente na parte da minha transgeneridade. No momento que eu passei a viver o momento como travesti. E todo esse período que de alguma forma se impregnou no meu trabalho. O Otto usou isso de forma muito interessante.
No filme, as pessoas pegam em armas e os políticos são conservadores. Você acha que é assim que este momento do Brasil será lembrado nos livros de história?
Acho que há uma discussão um pouco mais sútil. Não acho que o que caracteriza o Brasil atual são as armas e a violência. Mas o crescimento de uma direita fascistóide. E a iminente destruição de instituições que são democráticas. Isso que caracteriza o Brasil. A violência já é um outro assunto, e eu não estou muito segura hoje em relação a esse tema.
Por quê?
Entre os anos 1980 e 1990, que foi o período que produzi o Piratas do Tietê, para as revistas da editora Circo, o uso da violência como recurso narrativo tinha um sentido que não sei se eu reproduziria hoje. Estou diferente hoje e o Brasil está diferente também.
Naquela época, todos, não só Piratas do Tietê, mas também os Três Amigos [grupo formado pelos cartunistas Angeli, Laerte e Glauco], falavam muito nessa linguagem. Era a violência estapafúrdia. De uma coisa sem nenhuma racionalidade. Violência irracional.
O filme mostra São Paulo como uma cidade que termina pulverizada pelo caos e a violência. É isso que vai sobrar daqui a uns anos? Cacos?
Claro (risos). A gente vai ter sorte se tiver caco (risos).
O que sobrará de nós, Laerte?
O antropólogo Viveiros de Castro deu uma entrevista para a Eliane Brum e falou que São Paulo é o laboratório do apocalipse. Eu acho muito boa essa expressão. A região urbana de São Paulo, em termos de ecossistema, de natureza, de possibilidades de equilíbrio climático, sofre muitas agressões, há anos. E elas nos fazem pensar. É o que a gente está fazendo com o país.
Resumindo, São Paulo é o centro da bagunça que está virando o Brasil. As pessoas lidam com questões ambientais de forma absolutamente irresponsável.
Laerte
Essa nova configuração do mundo vem inspirando muitos humoristas e cartunistas. Por que criar ou tirar personagens clássicas da gaveta?
Eu estou bem ativa no que estou fazendo. Não estou pensando em fazer personagens de novo. A escolha que fiz de deixar personagens na gaveta é muito válida para mim. Eu abri portas. Não estava sentindo que era mais minha praia. Como é a de autores como Glauco, Angeli, Adão. Eu me sentia melhor criando situações, criando roteiros, sempre inéditos. Gosto disso.
O filme tem um trecho muito divertido em que você é entrevistada e definida com perguntas constrangedoras. O quanto te incomoda dar entrevistas?
Não me incomoda. Quando eu sinto que a pergunta é feita para ser incômoda, aí, sim, incomoda. Mas a maior parte das perguntas não tem esse sentido. A maior parte das perguntas tem sentido de buscar respostas para coisas que não são muito simples. Tem certas perguntas que simplesmente não tem resposta.
E as que fiz? Tem reposta?
(risos) A que você fez agora há pouco, sobre São Paulo. Ela vai terminar? Certamente vai (risos). Mas eu não sei quando! Tem coisas que não tem muito o que responder. Agora, a busca por respostas para essas questões não termina nunca. Porque a gente quer saber mesmo. A gente depende de ter uma resposta no horizonte. Para traçar planos agora.
Ou ao menos para dar esperança para as pessoas, né? A vida não está fácil.
Sim! Vou citar a Eliane Brum mais uma vez. Ela falou outro dia que a gente tinha que ter o direito de não ter esperança (risos). Achei muito interessante isso. Tem um ponto que realmente não tem mais volta. E acho que a gente já passou esse ponto.
Estamos vivendo a trilha de um desastre que vai acontecer ainda. Neste século. E a dimensão desse desastre vai ser definida pelo que a gente for viver agora. Pelo que a gente conseguir fazer.
Laerte
Você é uma pessoa muita querida e admirada por quem acompanha seu trabalho, mas você nunca escondeu a insegurança sobre sua obra. O quanto você se considera insegura?
Olha, o que é o normal, né? (risos) O quanto de insegurança ainda está dentro de uma faixa de normalidade? Eu sinceramente não sei. Eu estou aqui no Uber, falando com você pelo telefone, e saindo de casa para a análise.
Lá na análise, eu sei que eu sou uma pessoa insegura. Se essa insegurança se justifica ou não é um objeto do meu trabalho. O que tenho tentado fazer é entender como essa coisa funciona em mim. Estou tentando ainda (risos).
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