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Patti Smith lança livros em evento grátis antes do show em SP; leia trecho

Patti Smith se apresenta em Nova York, abril de 2019 - Getty Images
Patti Smith se apresenta em Nova York, abril de 2019 Imagem: Getty Images

Alexandre Matias

Colaboração para o UOL, em São Paulo

25/10/2019 01h31

A vinda de Patti Smith em novembro para o Brasil tem tudo para se tornar um grande evento. Além de ser a principal atração do Popload Festival, que acontece no próximo dia 15 de novembro, no Memorial da América Latina, ela acaba de confirmar outra apresentação no país, no dia anterior. E o melhor: de graça. Mas a nova aparição da cantora, compositora e escritora norte-americana não é uma apresentação musical: ela falará com o público sobre seus dois livros mais recentes, que estão sendo lançados agora no Brasil, Devoção e O Ano do Macaco (leia abaixo trecho inédito).

Esta apresentação extra acontece no dia 14 de novembro, às 14h, no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo. Os ingressos serão distribuídos no dia do evento e a mediação do bate-papo fica com a jornalista e curadora da Flip Fernanda Diamant. "Os livros dela são sobre memórias biográficas e literárias, ela fala muito das leituras que fez e da convivência com uma série de personagens incríveis", explica a jornalista. "A ideia é fazer ela ler alguns trechos e comentar seu processo criativo. Resumindo, fazer ela falar o máximo possível."

Na história do rock

Madrinha do punk rock, Patti Smith entrou para a história da música com seu primeiro disco, o mítico Horses, lançado no final de 1975, que inaugurou a fase nova-iorquina do gênero, abrindo a porta para grupos como Television, Talking Heads, Ramones e Blondie, entre outras bandas que se apresentavam no berço do punk, a casa de shows CBGB.

Mas, ao contrário dos outros artistas daquela cena, Smith tinha um apreço pela literatura, pelo ativismo e pela boemia, alicerces de sua obra, que inevitavelmente transbordou para além da música a partir do lançamento de seu primeiro livro, "Só Garotos", em 2010. A obra, baseada em suas memórias, contava o início da carreira ao lado do artista Robert Mapplethorpe e a fez vencer um dos mais importantes prêmios de literatura do mundo, o National Book Award daquele mesmo ano.

Os dois novos livros têm diferentes naturezas. Devoção é um romance de ficção e conta a história de uma jovem patinadora que busca suas origens a partir de uma viagem à França e uma visita à casa do escritor Albert Camus. Já O Ano do Macaco segue a linha autobiográfica dos livros anteriores, Só Garotos e Linha M, ambos lançados no Brasil pela Companhia das Letras, que também lança as novas obras. Mistura uma turnê que a cantora fez pelos Estados Unidos em 2016 ao mesmo tempo em que via a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

Bate-papo com Patti Smith

Data: 14 de novembro
Local: Sesc Pompeia (rua Clélia, 93, Água Branca, São Paulo)
Horários: distribuição de ingressos a partir das 13h; início às 14h
Mediação: Fernanda Diamant.

POPLOAD FESTIVAL 2019

Patti Smith é a principal atração do Popload Festival. O evento ainda terá atrações como o grupo The Raconteurs, liderado por Jack White, o inglês Hot Chip, a cantora sueca Tove Lo, o grupo instrumental norte-americano Khruangbin e a volta do paulistano Cansei de Ser Sexy, entre outras.

Quando: 15 de novembro
Onde: Memorial da América Latina (Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664 - Barra Funda, São Paulo)
Horários: Abertura dos portões às 10h; início dos shows às 11h
Ingressos: pista R$ 580 (inteira), pista premium R$ 800 (inteira)
Onde comprar: www.ticketload.com e bilheteria do Credicard Hall

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Leia, a seguir, trecho inédito do livro "O Ano do Macaco"

A Santa Sé

Capa do livro "O Ano do Macaco", de Patti Smith - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "O Ano do Macaco", de Patti Smith
Imagem: Divulgação
"Era o Dia dos Mortos. As ruas secundárias estavam enfeitadas com caveiras de açúcar e uma espécie de loucura rançosa pairava no ar. Uma eleição no Ano do Macaco me dava uma sensação ruim. Não se preocupe, todos diziam, a maioria vence. Não é bem assim, eu revidava, o silêncio vence e a decisão vai ser deles, daqueles que não votam. E quem pode culpar essa gente, já que é tudo um monte de mentiras, uma eleição corrompida e dispendiosa? Milhões despejados num buraco coberto de plasma, gastos em comerciais de televisão com controvérsias intermináveis. Verdadeiros dias de escuridão. Recursos que poderiam ser usados para remover o chumbo das paredes de escolas em ruínas, abrigar os sem-teto ou limpar um rio imundo. Em vez disso, um candidato atira pás de dinheiro para dentro de um poço, desesperado, e o outro constrói edifícios vazios com o próprio nome, mais um tipo imoral de desperdício. No entanto, apesar de todos os temores, votei.

Na noite da eleição, me juntei a uma reunião de bons camaradas e assisti à novela horrível chamada eleição americana se desenrolar numa tv de tela grande. Um a um todos tropeçaram no amanhecer. O valentão urrou. O silêncio tomou conta. Vinte e quatro por cento da população tinha elegido o que existe de pior em nós mesmos para representar os outros setenta e seis por cento. Viva a apatia americana, viva a sabedoria distorcida do Colégio Eleitoral.

Sem conseguir dormir, fui até Hell's Kitchen. Alguns bares já tinham aberto as portas, ou nunca fecharam, e ninguém varreu ou limpou os reservados para se preparar para um novo dia. Quem sabe para negar que fosse um novo dia ou só para impedir que avançasse. Ainda é ontem, os escombros anunciavam, ainda existe uma chance no inferno. Pedi uma dose de vodca e um copo d'água. Tive que tirar o gelo das duas bebidas e largar num prato de pretzels velhos. O rádio estava ligado, um rádio de verdade, Billie Holiday cantando "Strange Fruit". A voz dela, de sofrimento lacônico, produziu arrepios de admiração e vergonha. Eu a imaginei sentada no bar, gardênia no cabelo e um chihuahua no colo. Eu a imaginei dormindo em um ônibus de turismo a diesel com uma saia branca amarrotada e uma blusa, deixando para trás um hotel sulista de brancos apesar do fato de ela ser Billie Holiday, apesar do fato de ela ser um simples ser humano.

O ventilador de teto estava coberto de poeira. Fiquei vendo-o girar, ou antes o movimento giratório. Devo ter cochilado por um momento, pegando o fragmento do final de outra música que tocava. New York, I love you, but you're bringing me down. Colinas cobertas de pinheiros, ovos frescos num cesto.

—Outra bebida?

—Não sou muito de beber, eu ia dizendo. Só um café preto.

—Quer leite?

A garçonete era bonita, mas tinha um pedaço de pele pendendo do lábio. Eu não conseguia parar de olhar. Na minha cabeça, o pedaço de pele ficou maior e mais pesado, então se soltou e despencou numa tigela imaginária de caldo fumegante que alargou, formando uma piscina borbulhante de onde emergiu uma imitação de vida. Sacudi a cabeça. As coisas que fazem a gente viajar podem ser bem aleatórias. Era o momento de cair fora, sem dúvida, mas uma hora depois eu continuava ali. Não estava com fome ou sede, mas pensei que de repente eu deveria pedir alguma coisa só para justificar o fato de ficar sentada no mesmo lugar por mais de uma hora, mas ninguém parecia ligar, talvez a mesma paralisia pós-eleição afetasse todos nós.

Os dias se sucederam, e o que tinha sido feito não podia ser desfeito. Passado o Dia de Ação de Graças, com a véspera de Natal assomando, vaguei pelas ruas de comércio ao ritmo de um sussurro interno: Não me dê nada. Não me dê nada. A culpa hidratou as partículas secas da derrota; como pôde um final tão terrível? Outro caso de clamores sociais em desequilíbrio. A noite silenciosa, silenciosa. Fuzis de assalto embrulhados em papel-alumínio empilhados debaixo de árvores artificiais decoradas
com pequenos bezerros dourados, alvos montados nos fundos dos quintais cobertos de neve.

Auge do inverno, mas parecia não haver frio algum. Cruzando a Houston Street, notei que o Menino Jesus estava ausente da cena do nascimento diante da St. Anthony. Não havia pássaros pousados nos ombros de são Francisco de Assis. Donzelas de gesso com toucas brancas preparavam festividades vazias. Nunca estive tão faminta, nem tão velha. Me arrastei escada acima até o quarto recitando para mim mesma: "Um dia eu tive sete, logo vou ter setenta". Estava realmente cansada. "Um dia eu tive sete", repeti, sentando na beira da cama, ainda de casaco.

A raiva silenciosa nos dá asas, a possibilidade de fazer as engrenagens girarem em sentido contrário, unificando o tempo. Consertamos um relógio, otimizando uma aptidão inata para refazer, digamos, todo o caminho de volta até o século xiv, marcado pelo surgimento do carneiro de Giotto. Ressoa o sino da Renascença, enquanto uma procissão de enlutados segue o caixão que abriga o corpo de Rafael, então soa mais uma vez, assim como a última batida de um cinzel revela o corpo leitoso de Cristo.

Todos vão para onde vão, assim como eu fui para onde fui, dando por mim num canto escuro cheirando a ovo e óleo de linhaça na oficina dos irmãos Van Eyck. Então vi uma cascata de água pintada da maneira exata como se para induzir a sede. Testemunhei a precisão do mais jovem quando tocou a ponta escura do pincel na ferida fresca do Cordeiro Místico. Saí rápido dali para a gente não colidir, e continuei depressa em direção ao século xx, que avançava, sobrevoando os campos verdes de prosperidade rural pontuados de cruzes em memória dos filhos assassinados da Grande Guerra. Não eram sonhos incompreensíveis, mas o delírio das horas vividas. E nessas horas fluidas testemunhei coisas maravilhosas, até que, cansada, dei voltas sobre uma pequena rua cheia de casas antigas de tijolos, escolhendo o telhado da que tinha uma claraboia empoeirada. A portinhola estava destrancada. Tirei a touca, sacudindo um pouco de poeira de mármore. Desculpe, disse, olhando para um punhado de estrelas, o tempo está correndo e nem um único coelho é capaz de acompanhar. Desculpe, repeti, descendo a escada, consciente de onde tinha estado.

Dia 30 de dezembro. Passei meu septuagésimo aniversário no final do ano, tornozelos afundados em confetes. Sussurrei Feliz Ano-Novo para as minhas botas viajadas, como tinha feito exatamente um ano atrás. Fazia um ano que tinha estacionado na frente do Dream Motel, onde certas coisas se tornaram incertas e uma placa previu que eu iria a Uluru. Um ano do dia em que Sandy Pearlman ainda estava vivo. Um ano do dia em que Sam ainda era capaz de preparar uma xícara de café e escrevia com as próprias mãos."

(Tradução de Camila von Holdefer)