Um Black Mirror no hip hop: Edgar rima sobre uma distopia que já chegou
"Isso é muito Black Mirror, meu!". Ouvir o som as letras de Edgar é entrar no mundo indecifrável de um cérebro que funciona em ritmo acelerado e que nem sempre é fácil de ser compreendido. Por isso, a lembrança do seriado da Netflix surge diversas vezes, com letras que parecem remeter a um futuro distópico e a questões de raça, sexualidade e ecologia. O problema é que a distopia soa mais real do que nunca, enquanto o artista já prepara seu próximo álbum, Ultraleve, na sequência de Ultrassom (2018).
Criado em uma comunidade carente de Guarulhos, Edgar destoava dos colegas que pouco se interessavam nas aulas e também não combinava com a cena do rap em que cresceu. Hoje, foge do estigma de ser apenas um rapper. Por conta de suas performances também é assediado para trabalhos e parcerias com gente de renome. Elza Soares foi uma das que contribuiu para aumentar sua fama, com a parceria em "Exú nas Escolas". Depois, vieram Baiana System, Hermeto Pascoal, Nômade Orquestra e até marcas como a Puma.
Multifacetado
É impossível resumir Edgar à figura de um rapper. Seu próprio som já transcende o estilo. Além disso, Edgar ele traz um pacote bem maior, com figurinos, máscaras, cenografia, instalações. "Meu show é onde consigo trabalhar todos os meus vieses artísticos", comenta ele. "Eu me considero um multiartista. O tênis que me calça é o 39, mas eu sou 42, tem mais coisa aí. É como quando me chamam de músico, não sou um músico excepcional, sou um letrista."
Eu aprendi muito mais quando eu calei meu ego [da canção Líquida]
Edgar encontrou sua paixão pelas letras bem novo. "Sou de família pernambucana, cresci dentro de favela, tendo de correr, porque era preto e qualquer policial branco pode te forjar algo. Lá o sonho é ser jogador de futebol, é roubar um banco. Mas sempre gostei da escola, então eu era o favelado que tomava conta da biblioteca. Que conversava com outros amigos: 'Não cabula aula não, tem prova'. Fui bem nerd, mas percebi que é um sistema falido", diz ele, que tem um estilo mais falado do que cantado em suas linhas de voz.
"Sempre gostei de escrever. Na 4ª série fiz uma prova da Saresp (Secretaria de Educação do Estado de SP), tirei a nota máxima e percebi: 'Ó, que legal, o aluno péssimo em matemática, que gosta de cabular a educação física, vai bem nas letras. Então comecei a escrever as minhas ficções. Com 16 anos, fui na peça de teatro de uma amiga em que as letras eram do Gabriel o Pensador. Então, se a galera conseguia escrever uma peça de teatro, vi que também podia", conta Edgar.
Mas Edgar nunca foi usual. Desde o começo, já tinha inclinações para outras artes. Sua ideia não era criar um disco para ser ouvido em uma plataforma, mas surgir com uma experiência mais completa. Ainda em Guarulhos, ele virou amigo dos beat makers locais e começou a produzir suas músicas com a ajuda deles, unindo com muito experimentalismo as letras já um tanto lisérgicas com ritmos como trip hop, eletro hop e rap rave.
Precisamos despertar, se não w w w
Vamos destruir o espaço, saia da frente da tela [da canção Plástico]
Edgar começou a se destacar participando de programas como o Mano e Minas, da TV Cultura, e com Protetora dos Bêbados e Mal-Amados (2017), um EP lançado junto a um curta metragem. O YouTube, por sinal, foi uma plataforma importante para ele.
"Sempre pensei em como quebrar os padrões das coisas. Um dos discos era para ser apresentado em uma galeria. Mas eu não tinha dinheiro. Aí me falaram: 'Mano, porque você não canta o bagulho e coloca tudo com as artes no YouTube? Lá vira sua galeria'", relembra o paulista.
Parceria com Pupillo
Em 2015, os shows de Edgar já tinham roupas coloridas, máscaras e performance. Na mesma época, ele começou uma amizade que definiria novos padrões para seu som e alavancaria Ultrassom. O cantor conheceu Pupillo, hoje ex-baterista da Nação Zumbi, que brincou com ele. "Ele veio: 'Que parada é essa? Parece um Avatar cantando rap'".
Apesar de um período de baixa, em que trocou São Paulo por Pernambuco e quase deu um "chega, falou, valeu" para a música. A insistência de Pupillo deu certo. "Não sou fácil", admite Edgar, falando de seu jeito e de sua mente única.
A ideia foi usar instrumentos e influências da década de 1980, do filme Blade Runner aos teclados Jupiter. A mescla deu o tom de Ultrassom, que surgiu bebendo nas letras futuristas e distópicas de Edgar e um som com uma robótica cara de 1982 - e um pezinho no funk para dar aquela vontade de dançar nos shows.
O futuro é um jovem maníaco viciado em videogames
O futuro já foi e ainda continua sendo
O futuro é uma criança com medo de nós [da canção Plástico]
Como falar para os favelados?
"Tenho um amigo que fala que o que escrevi é tipo um tarô, que as cartas estão acontecendo. Eu canto 'As igrejas irão cair', e um cara dispara contra uma sinagoga, Notre Dame pega fogo. Falo de saúde mecânica, e as impressoras em 3D são cada vez mais reais. O futuro distópico está aqui", comenta Edgar, em momento "bem Black Mirror". Dá pra lembrar até a treta Intercept x Sergio Moro:
Conversas printadas se transformam em documentos
(...)
Cuidado com o histórico
Print não some, print não some [da canção Print]
Tendo saído de uma comunidade carente, Edgar tem sempre um dilema de se fazer entender. "Como falar pros favelados que moram no Coqueiro, pra eles entenderem o que eu falo? Para mim, sempre é complicado. Se for para escrever como penso, ficaria muito complicado, preciso simplificar. Até porque eu percebo que nos grupos de rap a galera tá querendo complicar, falar bonito, mas esquece que o rap é uma linguagem. Se não souber a língua dos memes, vai ficar no chapéu", opina Edgar, que em seu último clipe, Felizes Eram os Golfinhos, usou stickers de WhatsApp e memes. "Eu tento traduzir os signos e as coisas que vejo."
Edgar diz que gosta da inconstância. Enquanto dá entrevista, pensa na direção de arte de um filme que fez com Puma e Hermeto Pascoal, nos looks que precisa fechar para uma coleção de inverno e nas aulas de uma oficina que fará em parceria com a Red Bull. Isso tudo enquanto Ultraleve está em composição - "está com umas quatro faixas amarradíssimas".
Para o novo trabalho, Edgar prevê algo levemente menos apocalíptico e falará de temas como fake news, a mitologia nas igrejas e violência. "É como estar em uma nave que eu piloto". O mundo de Edgar é estranho, incômodo e desconfortavelmente real. Mas vale sentar no banco do carona e acompanhar para onde essa (dançante) jornada vai levar.
Conheça mais de Edgar:
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