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Como Martin Scorsese "trolla" audiência em documentário sobre Bob Dylan

Cena de "Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese" - Divulgação
Cena de "Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese"
Imagem: Divulgação

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

19/06/2019 04h00

Atenção: Este texto contém trechos que podem ser considerados spoilers de Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese. Não leia se não quiser saber

Amplamente divulgado como novo documentário sobre uma das mais famosas e malucas turnês de Bob Dylan, Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese não é exatamente isso. Há sim a parte documental, que compõe a maior parte do longa de mais de duas horas de duração. Mas o diretor resolveu que seria legal dar uma trollada na audiência. Ou, em palavras mais claras, adicionar um quê de ficção ao seu projeto.

Martin Scorsese já havia feito um documentário sobre Dylan, com No Direction Home (2005), em que mostrava a evolução do cantor de folk ao rock. Agora, o foco é a Rolling Thunder Revue, que se passa em 1975 e captura um dos momentos mais curiosos da carreira do cantor.

Dylan já era um grande astro, mas queria se reconectar às pequenas audiências. Então, ele voltou a tocar em auditórios menores, para públicos que não o veriam se tivessem que comprar entradas caras. E, além de sua banda, ainda chamou uma lista de convidados que incluíram Joan Baez, Roger McGuinn, Joni Mitchell, Ronee Blakely e Ramblin' Jack Elliott.

O resultado foi uma turnê que não foi um sucesso financeiro, para seus padrões, mas que o próprio Dylan, no documentário, retrata como um sucesso em outros campos, mais pessoais. E o filme Rolling Thunder Revue é a chance rara de retomar os momentos de um ídolo acessível, que ainda andava no meio de muita gente, estava com a criatividade em alta - tanto que compôs o hit Hurricane nesta época -, mesmo que algumas coisas que se veem na tela sejam pura fantasia.

As pegadinhas de Scorsese

Talvez o próprio título do filme tenha dado a letra: "Uma História de Bob Dylan por Martin Scorsese". Para quem assistir mais desavisadamente, tudo que se passa em Rolling Thunder Revue parece real. Mas não é bem assim. Scorsese, é claro, viabilizou o longa com um riquíssimo e bem tratado arquivo da época. Ver shows de Dylan, com diversas músicas na íntegra, e principalmente assistir às imagens de bastidor daquela efervescente cena, é um deleite para quem acompanha a carreira do músico.

Mas, como se sabe, Dylan tem toda uma mitologia em torno do seu nome. Scorsese aparentemente só tomou a liberdade de ampliá-la, distorcendo a realidade e criando passagens fabricadas para isso.

O que é verdade e o que é mentira?

Sharon Stone em Rolling Thunder Revue - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Sharon Stone em Rolling Thunder Revue
Imagem: Reprodução/Netflix

Uma das mentiras mais destacadas, que chama atenção de cara, é a presença de Sharon Stone no documentário. Ela aparece relatando uma ida a um show de Bob Dylan e conta que sua camiseta do Kiss chamou a atenção, a ponto de ela ser convidada pelo músico para bater papo e depois ter sido chamada para sair em turnê com a banda, só por diversão.

Sharon está interpretando a si mesma, mas numa versão apenas fictícia. Apesar de dizer que tinha 19 anos, ela tinha 17 à época, e não há registros de que tenha estado por lá como uma presença marcante e ligada a Dylan. O filme entrega a farsa quando ela diz que ele escreveu Just Like a Woman para ela. A música é de 1966, do disco Blonde on Blonde.

Stefan Van Dorp é outra figura central da história. Ele é o responsável pelas filmagens, na narrativa do documentário, e chega a demandar créditos pelo seu trabalho durante o longa. Dorp chegou a aparecer apresentando Scorsese na estreia do longa, em Nova York. No entanto, trata-se de um ator: Martin von Haselberg.

Larry "Ratso" Sloman, jornalista que cobriu a turnê, conta a experiência de ver as pegadinhas: "Demorou umas três vezes que ele aparece pra pensar: 'Caramba, quem é esse cara?'. E aí eu percebi o que Scorsese estava fazendo", disse Sloman à revista Time.

Pôster de Renaldo and Clara - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Pôster de Renaldo and Clara
Imagem: Reprodução/Netflix

As filmagens, na verdade, foram feitas por Sam Shepard, que produzia o filme Renaldo and Clara, lançado em 1978 e dirigido por Dylan. Curiosamente, Renaldo and Clara seguia o mesmo padrão: imagens de shows, entrevistas e passagens fictícias com músicos, incluindo Dylan, sua mulher Sara, Baez e outros. Muitas imagens do filme de 1978, além das sobras, foram usadas por Scorsese.

Outras passagens falsas são Dylan dizendo que pintou o rosto de branco em um show por ter visto o Kiss ao vivo - as datas citadas não batem -, Allen Ginsberg não virou um carregador de bagagens e o deputado Jack Tanner nunca existiu.

O que pensar disso?

Ver o documentário sem saber das trollagens é uma experiência bem diferente da que se tem vendo com a noção de que nem tudo ali é verdadeiro. Rolling Thunder Revue parece que se preza, na verdade, a ser entretenimento de boa qualidade e uma ampliação do mito Bob Dylan e de uma imagem mais fantasiosa da geração que viveu a década de 1970.

Mais que isso, como Sloman diz, o doc mostra o "Bob Dylan mais solto que já vi. Parecia que o fardo da fama tinha sido tirado dele", uma leveza que transparece no músico, em seu auge, na década de 1970, mas que é trocado pela acidez das entrevistas atuais. O que sobrou daquela tour?, responde Dylan: "Cinzas".