Filme sobre machismo na sociedade brasileira é ovacionado no Festival de Cannes
Em qualquer época, a vida da mulher em uma sociedade sexista como a brasileira nunca foi fácil. Mas nos anos 1950, bem antes da revolução sexual sessentista, era especialmente complicada. Que o digam Eurídice e Guida, as duas irmãs de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", longa do cearense Karim Aïnouz exibido ontem à noite na mostra paralela Un Certain Regard, no Festival de Cannes.
Na sessão oficial, com a presença da equipe e público majoritariamente brasileiro, houve quase quinze minutos de aplausos após a projeção. Baseado no romance homônimo de Martha Batalha, o filme conta a história de duas irmãs cariocas, de personalidades bastante distintas: Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler). A primeira é mais casta e sonha se tornar uma grande pianista, mas se casa com um burocrata (Gregório Duvivier) e se torna dona de casa; a outra é carnal e se entrega a um amor irresponsável, mas se vê abandonada pelo amante depois de engravidar.
Com o tempo, as duas se separam e perdem contato, passando a levar vidas completamente distintas, a não ser por uma característica comum: sofrem diante de uma sociedade machista, patriarcal, em que as mulheres têm, sim, uma série de limitações e papeis sociais bem definidos.
Assunto urgente
O projeto surgiu em 2015, mas diante das mudanças no mundo desde então - tanto o recrudescimento do pensamento conservador quanto o renascer da luta feminista -, o tema da opressão feminina foi ganhando cada vez mais atualidade. "Quando comecei a fazer o filme, esse era um assunto importante. Mas agora, vejo que se tornou urgente", diz Aïnouz, em entrevista ao UOL.
Em estilo, o filme rompe com o intimismo "certinho" e meio autocomplacente de produções anteriores de Aïnouz, como "O Céu de Suely" (2006) e "Praia do Futuro" (2014). Lembra mais as ousadias de "Madame Satã" (2002), filme que revelou Aïnouz para o mundo (é ainda hoje seu melhor trabalho), sobretudo nas imagens em tons estourados, em verdes e vermelhos berrantes.
Aïnouz desta vez opta por correr um risco: faz um filme de denúncia dos abusos de uma sociedade machista, mas com um tratamento muitas vezes cômico, nonsense. Assim, cumpre algumas exigências modernas sobre a representação feminina de não explorar seu sofrimento de maneira voyeurística; prefere colocar as mulheres como indivíduos dotados de altivez, de capacidade de resistência apesar de tudo.
Quis sublinhar a questão da resiliência. Enquanto filmava, pensei: mulher nenhuma pode chorar nesse filme!. Tudo é muito cruel, mas é muito importante falar de crueldade sem vitimização.
Porém, muitas vezes essa forma de representar a opressão acaba por diluir o peso da denúncia, e o filme de vez em quando não dá tanto a impressão de estar criticando certas situações, mas de naturalizá-las. É o preço de se correr riscos, afinal, mas o fato é que Aïnouz ao menos está experimentando um novo caminho narrativo, é algo mais do que louvável. Andando na corda bamba entre a comicidade e o melodrama rasgado, "A Vida Invisível" é seu filme mais interessante em anos.
"Eu acho que é muito importante que a gente ultrapasse a empatia [fácil] no cinema. Para mim o estranhamento é mais importante. Basta ver o personagem do Gregório [Duvivier, que vive o marido machista de Eurídice]: teria sido mais fácil colocar um vilão, desses de bigode. Mas tenho uma outro interesse, de causar um estranhamento", diz o cineasta. "E me interessava muito também falar dessas vidas não espetaculares: foi uma das coisas que mais achei bonitas no livro."
Duvivier nu em cena
Duvivier interpreta Antenor, funcionário dos Correios que se casa com Eurídice e a impede de correr atrás de seus sonhos, limitando-a à vida de mãe e de "mulher do lar". Mas também ele próprio tem uma existência bastante restrita, sem maiores realizações. Para compor o personagem, Duvivier usou figurinos de seu próprio avô vestia na década de 1950.
"Para mim foi terapêutico poder usar as roupas dele. Pensar que meu avô foi, de certo modo, como esse personagem", conta Duvivier. "Ele é o clássico homem comum, profundamente infeliz, porque a vida não cabe nas normas que ele tem na cabeça dele. Ele [Antenor] tinha um ideal de vida pré-existente, tentou incluir a existência dele e da mulher nessa forma. Mas a vida humana não cabe ali", diz o ator e humorista.
Duvivier diz que conheceu Aïnouz na época do que ele chama de "golpeachment" de Dilma Rousseff, quando foi chamado para o projeto. "É uma forma de a gente olhar para a nossa estrutura familiar arquetípica e se perguntar se realmente é essa família brasileira que a gente deseja", diz o ator, notório crítico do conservadorismo do governo de Jair Bolsonaro.
Mas o próprio Duvivier tem suas travas: em várias cenas em que precisou aparecer nu, sentiu-se intimidado. "É uma tensão tão grande [ficar pelado em cena], mas acho que seria mais difícil se fosse para ser algo erótico. Mas minhas cenas são a coisa menos erótica jamais filmadas! E foi bom usar meu próprio desconforto como ator para retratar o desconforto daquele personagem", diz.
O ator se sai muito bem em suas cenas, sobretudo na de sua noite de núpcias atrapalhada. Carol Duarte e Julia Stockler, as atrizes que interpretam respectivamente Eurídice e Guida, também têm momentos bastante inspirados, em um modo de atuação estilizado com finalidades cômicas, na mesma chave do de Duvivier.
No trecho final do filme, Fernanda Montenegro surge em uma breve, mas marcante participação. Em um momento, ela se põe a ler cartas em uma cena que faz pensar em uma homenagem à personagem que a atriz viveu em "Central do Brasil". Mas Aïnouz nega que a citação tenha sido voluntária.
"Nunca tinha pensado que a Fernanda faria o filme. Eu a chamei para tomar um café, aí ficamos três horas conversando - e eu só na dúvida sobre se ela aceitaria. Mas ela topou" No fim, a personagem dela até vai morar no Pedregulho, um conjunto residencial [na zona Norte do Rio] que até lembra o em que a personagem dela em 'Central do Brasil' morava, mas não houve uma citação proposital."
A boa recepção ao longa mostra que, apesar das cores locais, o filme tem um apelo universal. E a comunicabilidade do longa foi de fato uma preocupação de Aïnouz. "Fico muito pensando nas últimas eleições: não dá para falar apenas com as 48 milhões de pessoas que não votaram no Bolsonaro. Há as outras 52 milhões. Quero que elas ouçam a mensagem [do filme]. Com este filme, fiz as pazes com o ato de narrar. E acho que o melodrama me ajuda a chegar às pessoas."
O filme "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão" tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros em novembro.
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