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Com cenas raras, documentário desvenda figura mítica de Maradona

Cena do documentário "Diego Maradona" - Reprodução
Cena do documentário "Diego Maradona" Imagem: Reprodução

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Cannes

20/05/2019 09h11

Não deixa de ser irônico: uma das estrelas mais esperadas deste Festival de Cannes não faz parte da indústria cinematográfica. Diego Armando Maradona, o maior craque da história do futebol argentino, era o nome mais aguardado no tapete vermelho da festa francesa ontem à noite, mas um problema no ombro impediu o ex-jogador aparecesse na Croisette para apresentar um documentário sobre sua trajetória. "Diego Maradona" foi exibido ontem à noite, fora da competição, com esse grave desfalque.

Dirigido pelo britânico Asif Kapadia, que ficou conhecido por seus documentários sobre outros ídolos, como Ayrton Senna ("Senna", de 2010) e Amy Winehouse ("Amy", de 2015), o longa tem por foco o período napolitano da carreira de Maradona, entre 1984 e 1991, quando o argentino se tornou um ídolo no Napoli de dimensões quase religiosas. Ainda hoje, há espalhados por Nápoles altares e homenagens diversas ao ex-jogador, com uma devoção que os napolitanos costumam reservar apenas a figuras cristãs.

O documentário conta com um material riquíssimo: Kapadia teve acesso a videos praticamente inéditoa sobre a trajetória de Maradona, inclusive com cenas do argentino ainda criança, em uma favela de Buenos Aires. O filme apresenta apenas imagens de arquivo, mas inclui áudio de entrevistas e depoimentos recentes do próprio craque, de amigos e familiares. No acervo, muitos bastidores em festas e vestiários - além, é claro, de trechos de jogos. Tudo no sentido de transmitir ao público a essência de Maradona e o motivo pelo qual virou um ídolo.

Porque se Maradona virou uma estrela tão grande, isso não se deu apenas por sua admirável habilidade de fazer lindas jogadas. Sua celebridade se explica também por sua capacidade gerar paixão extrema e ódio profundo por onde sua figura roliça passou, ao longo dos anos. Como um comentarista esportivo explica no filme: "Misturava um pouco de malandragem com genialidade". Também era um rebelde e um sujeito carismático, além de demasiadamente humano, capaz de ceder às tentações mais mundanas - a ponto de se deixar destruir por elas.

O filme começa quando Maradona já era conhecido - após uma mal-sucedida passagem pelo Barcelona, é contratado pelo Napoli, um time até então com um currículo modesto, vítima de toda sorte de preconceito na Itália por representar uma cidade do Sul empobrecido do país, que muitos consideravam "a África italiana". Nos jogos contra equipes ricas do norte italiano, as ofensas racistas eram comuns - e agressivas.

O filme estabelece um excelente paralelo entre Maradona e os habitantes da cidade que o abraçou: pobres, humilhados pelas circunstâncias, mas que se valeram de uma relação cooperativa de apoio e respeito mútuo. Nápoles dava toda a atenção e amor a Maradona, que devolvia o calor da população em forma de gols. Maradona deu autoconfiança ao napolitano, ao inseri-lo na elite do campeonato italiano e conseguir importantes títulos ao time. Havia um mutualismo nessa relação entre o argentino e a cidade que o consagrou.

São investigações de natureza sociológica como essa que tornam "Diego Maradona" um documentário acima da média, escapando da mera e cansativa narrativa apenas de fatos marcantes da trajetória do biografado. O que não significa que detalhes de sua vida pessoal não sejam dissecados pelo longa, mas muita coisa fica de fora (o dopping na Copa dos EUA e as internações em Cuba, por exemplo) porque o centro do filme é compreender Maradona, o indivíduo e a persona que ele próprio forjou; o período napolitano é o suficiente para isso.

"Acho que seus problemas e questões surgem pelo fato de que ele não estava preparado para a fama", diz Kapadi, em texto para a imprensa comentando seu filme. "É brilhante e autodestrutivo", diz.

O cineasta acredita que a falta de preparo e maturidade de Maradona contribuíram para sua derrocada, mas vê em sua conturbada relação com o filho uma questão também de grande relevância. "O que é realmente interessante é que, quando você o observa no ápice de suas realizações, e as coisas começam a dar errado para ele, é justamente quando ele renega seu filho", diz, referindo-se a Diego, nascido em 1986 de um caso extraconjugal. Ele só reconheceria a paternidade em 1993, mas só conheceria o garoto de perto mesmo em 2003.

"É minha teoria pessoal [...]: acho que o que provavelmente causou ou pelo menos agravou os problemas de Maradona foi a negação do próprio filho", diz Kapadia.

Os "problemas" a que o cineasta se refere nunca foram segredo a ninguém: Maradona, ainda no auge, bebia demais, adorava noitadas com mulheres e se viciou em cocaína. Nos últimos anos no Napoli, ia para a farra de domingo a quarta, guardando os dias entre quinta e sábado para se preparar para o jogo dominical. Ainda por cima, envolveu-se com líderes da Camorra, a máfia napolitana, o que lhe traria inclusive problemas de natureza legal.

"As pessoas ficam fascinadas pelo seu gênio fracassado. Mas o que ele traz, por que é tão fascinante e interessante? Ele não é convencional. É um menino que vivia pela rua e sempre será. Vai ter atitudes que desagradam", diz Kapadia.
"Diego Maradona" é um filme altamente apreciável, mesmo para quem não entende ou não dá a mínima para futebol. Mas longa traz o registro de tantas jogadas de gênio que até quem nunca jogou uma pelada na vida há de ficar boquiaberto. E há ainda o estudo sobre a personalidade de Maradona, feito com bastante sabedoria, sem sensacionalismo. Por enquanto, o filme ainda não tem previsão de estreia no Brasil