Engajado e militante, doc argentino retrata luta pela legalização do aborto
Um grupo de mulheres ativistas, munidas de lenços verdes, fez barulho por onde passou na tarde de ontem (dia 18), no Festival de Cannes. Mas nada relativo à causa ecológica: a cor é também o símbolo da luta de milhões de argentinas favoráveis à legalização do aborto no país - algumas delas estiveram no Palácio dos Festivais para ajudar a promover o documentário "Que Sea Ley" [Que seja lei], sobre a luta por tornar a prática abortiva um direito das mulheres da Argentina.
Dirigido pelo cineasta portenho Juan Solanas, que já havia abordado o tema em seu longa de ficção "Nordeste" (2012), o filme. exibido fora de competição, registra parte da movimentação que levou 2 milhões de argentinos às ruas em agosto do ano passado, quando um projeto de lei para legalizar o aborto chegou ao Senado, após uma aprovação histórica alguns meses antes pelos deputados do país. Mas os senadores jogaram um balde de água fria na militância: derrubaram o projeto, ainda que em votação de placar apertado (38 x 31 votos). Mas a mobilização tão expressiva trouxe o tema de volta ao centro das discussões no país.
Assim como o pai, o prestigiado cineasta argentino Fernando Solanas ("Memória do Saque", 2004), Juan aposta em um cinema engajado, militante, sem medo de se comprometer: seu documentário deixa o tempo todo claro a sua posição favorável ao direito das mulheres de abortarem.
"Já no título deixo isso evidente", diz o cineasta, em entrevista ao UOL. "Para mim, sobretudo no mundo de hoje, temos o dever de sermos políticos. A arte pode abrir janelas para o espectador, o cinema é muito poderoso nesse sentido".
Solanas diz que sempre achou um absurdo a proibição do aborto em seu país. "Comecei a me informar sobre o tema enquanto cidadão. Vi ao vivo as votações [na câmara dos deputados, em junho de 2018] e a aprovação foi histórica. Chorei muito! Aí tive a ideia de filmar o que estava acontecendo".
O cineasta decidiu, então, ir às ruas para registrar a movimentação, mas resolveu complementar o material com histórias de argentinas que se prejudicaram de alguma maneira por conta da proibição do aborto. "Quando o projeto não foi aprovado [no Senado], resolvi utilizar meu filme como objeto para ajudar nessa luta", explica Solanas.
O documentário traz alguns casos bastante dramáticos que ilustram as dificuldades enfrentadas por muitas mulheres. Há depoimentos de grávidas que sofreram dores terríveis após tentarem tirar seus filhos em clínicas clandestinas, sem condições mínimas de higiene ou de conforto. Muitas mulheres morreram, e outras carregam marcas físicas ainda hoje. Algumas que conseguiram sobreviver precisaram ir a hospitais para fazer curetagem de restos de seus fetos - quase sempre, sendo humilhadas e tratadas de maneira hostil por médicos e enfermeiras, que condenavam a tentativa de aborto.
Uma das histórias mais chocantes é a de uma mulher que revela que, aos 12 anos, engravidou de um parente - desde os 7 vinha sendo constantemente violada por ele. Ainda assim, foi proibida de tirar o bebê.
"Meu filme não é um panfleto: o meu interesse é sobretudo mostrar a realidade. Muitas pessoas contra o aborto simplesmente não conhecem ou querem conhecer as consequências que a proibição traz para as mulheres. Preferem ser ignorantes sobre o tema, para não precisar enfrentar a questão", diz o diretor.
Estimativas apontam que na Argentina, uma mulher morre semanalmente por conta de tentativas de aborto clandestino. Na América Latina como um todo, os números seriam ainda mais alarmantes.
"Tem muito de machismo, a questão do aborto passa pela do patriarcado, que é uma palavra que eu conhecia pouco, mas que, ao fazer o filme, pude compreender melhor. É sobre o controle do corpo da mulher", diz Solanas. "A muitas mulheres, é negado inclusive o direito de serem anestesiadas nos procedimentos [clandestinos]. Há um lado de tortura, revanche, um lado religioso de queimar a mulher 'pecadora' na fogueira, como se faziam com as feiticeiras [na Idade Média]."
O filme mostra que as mobilizações populares na Argentina são eminentemente femininas, com participação ainda discreta dos homens. Ele diz achar importante que a luta nasça a partir de demandas e discussões entre as mulheres, mas acredita que todos os que se importam com a situação deveriam se manifestar. "Todas as pessoas de boa vontade devem ajudar nesse combate. Não sou mulher, mas milito com boa vontade pela causa delas".
O filme sequer perde tempo em mostrar os pontos de quem acha que o aborto é um assassinato. Ao contrário: quando mostra os grupos conservadores, de resistência à mudança na legislação, destaca o aspecto hipócrita do discurso de muitos deles. "Muitos parlamentares votam contra, mas por puro cálculo político, eleitoral. Em muitos casos, suas próprias filhas abortam", diz Solanas.
"Se as coisas continuarem assim, tão polarizadas, a vida vai se tornar infernal. Vai virar uma guerra. Vivemos em um tempo ruim, e isso é global. As pessoas, pela primeira vez, compreende que o capitalismo, como se conhecia antes, desde o fim da Segunda Guerra, morreu. As pessoas estão enfurecidas. Daí nasce um Trump, um Brexit, um Bolsonaro... Isso pode trazer consequências gravíssimas, é preciso muita atenção".
Por enquanto, "Que Sea Ley" ainda não tem distribuição prevista no Brasil.
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