Topo

"Pastor Cláudio" retrata banalização da barbárie e reflexo da ditadura nos dias de hoje

Cena do documentário "Pastor Claudio" - Divulgação
Cena do documentário "Pastor Claudio"
Imagem: Divulgação

Amauri Eugênio Jr.

Colaboração para o UOL

14/03/2019 04h00

O filme é um alerta para a sociedade perceber o que é um regime de exceção e para evitar que o que vivemos agora se transforme no pesadelo vivido no passado.

É deste modo que a diretora Beth Formaggini se refere a "Pastor Cláudio", documentário que aborda a atuação política de Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS (Departamento da Ordem Política e Social) do Espírito Santo à época da Ditadura Militar (1964-1985), que entra em cartaz hoje nos cinemas.

No filme, Eduardo Passos, psicólogo e ativista dos direitos humanos, e Guerra, hoje bispo evangélico da Assembleia de Deus, falam sobre o papel que o ex-delegado desempenhou na repressão a ativistas políticos durante a ditadura. A conversa aconteceu a partir de fotos de vítimas e de vídeos dos depoimentos do ex-delegado à Comissão Nacional da Verdade. Além de ter executado opositores ao regime militar, que eram integrantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro), Pastor Cláudio, como ele prefere ser chamado, foi responsável pela ocultação de cadáveres, ao incinerá-los.

Trailer de "Pastor Cláudio"

UOL Entretenimento

Banalidade do mal

O modo como Guerra descreve os aspectos bárbaros de seus atos remete à banalidade do mal, conceito formulado pela filósofa Hannah Arendt para descrever o comportamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, que se considerava um burocrata que apenas cumpria obrigações e tarefas cotidianas. Em certo momento do documentário, Pastor Cláudio chega a referir-se ao seu trabalho do seguinte modo: "a minha bandeira era cumprir ordens."

A lógica sobre o cumprimento de ordens, mesmo com vidas de civis sendo colocadas em risco pelo próprio regime militar, pode ser vista no documentário outras vezes, como nos casos dos atentados contra a sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Rio de Janeiro, em 1980, e no Riocentro, em 1981.

Por outro lado, não foram raros os momentos em que o ex-delegado falava sobre o poder que tinha, inclusive após a abertura política, quando esteve na área de segurança pública. Este aspecto é reforçado pelo modo como aborda a sua participação em reuniões compostas por, entre outras pessoas, lideranças dos órgãos de repressão política da ditadura e membros da elite econômica.

"Ele tinha orgulho de dizer que o governador tomava cafezinho no gabinete dele, e essas coisas passam nas frestas do discurso. Por outro lado, ali está um agente do Estado, um agente violador de direitos, falando ele mesmo essas violações", ressalta Formaggini.

O limite da lealdade

Se Cláudio Guerra transitou entre o perfil médio de um burocrata e o comportamento de alguém que fazia questão de expor o poder que sentia, houve momentos em que ele tentou transmitir a postura de uma pessoa que havia sido injustiçada após a abertura política, ao não conseguir dar entrada em sua aposentadoria como ex-delegado. Apesar de ter sido respaldado pela Lei da Anistia, ele responde a processo do MPF (Ministério Público Federal) pela execução de Ronaldo Mouth Queiroz, então estudante de geologia e militante político, em 1973.

Houve poucos momentos em que Pastor Cláudio demonstrou, além de ser uma pessoa fiel a Deus, sinais de que um dos motivos para cumprir ordens era a preocupação com a segurança de sua família. Ainda assim, até em que ponto esse aspecto era sincero ou havia outra mensagem no discurso dele? "Nós deixamos esta questão e não a abordamos no filme, e convidamos as pessoas a levarem-na para casa. Preferimos focar na trajetória política de Cláudio, pois há tanto lixo sob o tapete que a gente preferiu deixar a coisa mais pessoal dele no ar", ressalta Beth.

Ontem e hoje

Pastor Claudio - Divulgação - Divulgação
Pastor Claudio mostra como executava adversários na ditadura militar
Imagem: Divulgação

Outro aspecto que vem à tona sobre o argumento de "Pastor Cláudio" é relativo ao discurso de ódio e a banalização da barbárie presenciadas nos últimos tempos. Isto não é por acaso, a começar pela observação feita pelo próprio ex-delegado sobre o modus operandi usado para a tortura: o viés que fomentava a atuação de agentes da ditadura à época foi, de acordo com o próprio entrevistado, incorporado à atuação de órgãos de segurança pública.

Além disto, o viés de insegurança sociopolítica vigente à época dá sinais de ressurgimento, como nos casos dos exílios de figuras como o ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL), a filósofa Márcia Tiburi, candidata ao governo do Rio de Janeiro durante as eleições de 2018 pelo PT, e a antropóloga e pesquisadora Débora Diniz.

"A gente tem este passado completamente impregnado [no presente] e o futuro corre sérios riscos de estar impregnado também. Chegou um momento em que ou enfrentamos a nossa história e lutamos pelos direitos humanos hoje, ou as mesmas práticas do passado são repetidas hoje", finaliza Beth Formaggini.