Longa brasileiro expõe ânus como instrumento político no Festival de Berlim
Dos 12 filmes brasileiros exibidos no Festival de Berlim deste ano, o longa "A Rosa Azul de Novalis", de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, é um dos mais propensos à controvérsia. E isso se percebe logo na primeira cena: a câmera foca um ânus masculino, bem de perto, sem o menor pudor.
Talvez os espectadores mais pudicos já deixem a sala de cinema logo ali, mas quem continuar na sessão verá mais adiante o mesmo orifício em versão ainda mais ousada: aberto, alargado, em um desconcertante close proctológico.
Filme pornô? Longa feito para chocar gratuitamente? Nada disso: o ânus surge em "Rosa Azul" como parte de um discurso fortemente político, sobre uma maneira de perceber tal órgão enquanto canal para uma postura liberal de vida, de obtenção de prazer, talvez até de transcendência pessoal. Isso a partir das falas do próprio dono do orifício, Marcelo Diorio, o protagonista do filme, que tem caráter semidocumental.
Na tela, ele conta um pouco de sua história e apresenta sua sempre interessante visão de mundo. E, claro, fala bastante sobre a própria sexualidade - e do próprio ânus.
"Conheci Marcelo em um Festival Mix Brasil [dedicado à diversidade sexual]. Ficamos amigos, e sempre houve um flerte em relação a fazermos um filme juntos", diz Vinagre, um dos diretores, em entrevista ao UOL em Berlim.
Carneiro, seu parceiro na direção, complementa: "Fiquei muito impressionado com a figura do Marcelo, a forma como ele se articulava e as histórias que ele elaborava. Fiquei muito curioso e comecei a botar pilha no Gustavo para a gente fazer um filme."
O longa é basicamente um apanhado de cenas mostrando Diorio falando sobre si: é homossexual assumido, dono de uma cultura geral invejável e tem um histórico de relações familiares complicadas. Também é há anos portador do vírus HIV, e embora no filme nunca deixe claro se tem ou não experiência dramática, na vida real jamais tinha participado de um filme.
Diante da câmera, porém, ele se mostra à vontade. Não teme aparecer nu, contar intrigantes experiências sexuais que já teve e nem mostrar o próprio orifício anal. Mas não faz nada disso apenas para chamar atenção: tudo aquilo faz parte de sua essência, da pessoa que ele é. E é por isso que ele é um personagem tão interessante, que rende um filme: não teme se expor por completo - literalmente.
"É claro que o público é sábio para escolher o que quer assistir, mas ele também tem que ser exposto à alteridade. Eu também adoro o cinema clássico, hollywoodiano, mas tanto ele como o cinema de autor em geral reitera sempre um modelo clássico de beleza, de voz, de dicção e de histórias que são contadas", diz Diorio. "[O filme] Já vale só pelo fato de você confrontar e dizer que essas histórias [de pessoas até então marginalizadas], que vão ser cada vez mais contadas a partir de agora."
No início, a ideia era um filme apenas sobre a pessoa Marcelo Diorio. Mas a ampliação do tema a um âmbito mais politizado surgiu na medida em que o personagem se expunha.
"O filme era uma maneira de realmente conhecer o Marcelo. Mas ao longo da feitura, a gente se questionava quem ele era realmente, porque ele falava muitas histórias de outras pessoas, fazia muitas referências [a artistas e intelectuais], então eu senti falta de algo genuinamente dele", diz Vinagre, que logo percebeu que a relação do protagonista com o próprio ânus poderia ser a chave para uma compreensão melhor do seu objeto de estudo.
"Nunca teve uma racionalização de fazer um filme político. Era o que era: um filme sobre o Marcelo, que é uma pessoa que fala muito de cu. Tinha a ver com as referências dele de leitura, da [poeta brasileira] Hilda Hilst e do [escritor francês Georges] Bataille, autores que falam muito de sexualidade", diz Vinagre.
Ao optar por colocar o orifício anal de Diorio como um dos centros do filme, os diretores sabiam que estavam mexendo em um vespeiro.
"Você não pode sequer usar a palavra 'cu', ainda mais mostrar o órgão! O cu é um lugar que foi marginalizado no nosso corpo. Fica lá atrás, a gente não consegue olhar. Mas ao mesmo tempo é algo que nos aproxima: todo mundo tem", diz Carneiro. "Só de colocar as pessoas em contato com essa informação já é um saldo positivo para o filme, independente da reação que vai gerar", diz, sabendo que são altas as chances de um público mais conservador rejeitar (ou não compreender) a proposta do filme.
Exibido em Berlim na mostra paralela Forum, reservada a trabalhos experimentais, "A Rosa Azul de Novalis" coroa a boa fase de Vinagre, destaque do cinema autoral brasileiro recente. Conhecido pelo média-metragem cult "Nova Dubai" (2014), em que ele próprio aparece fazendo sexo explícito, o cineasta terá seu primeiro longa em cartaz no Brasil a partir do dia 21 de fevereiro. "Lembro Mais dos Corvos" tem uma estrutura semidocumental semelhante a "Rosa Azul", mas com foco em uma mulher trans, a atriz Julia Katharine.
Tanto Vinagre como Carneiro (montador de grande parte dos filmes do amigo) sabem que "Rosa Azul" tende a ser bem acolhido em Berlim, cuja plateia é amplamente liberal, progressista, mas que poderá ser rejeitado quando entrar em circuito comercial no Brasil. Sobretudo no país da era Bolsonaro, cada vez mais conservador nos costumes. Nesse contexto, "Rosa Azul" ganhará um peso ainda mais politizado --e polêmico.
"Muito difícil prever qualquer coisa [no Brasil de Bolsonaro], mas acho que não tem como ter muito retrocesso em nível comportamental", diz Vinagre. "As pessoas não vão deixar de viver as vidas delas como escolheram. Esses jovens já cresceram com a internet com discursos sobre sexualidade e gênero... Não vejo a possibilidade de voltarem para o armário."
"Esses meninos já cresceram com uma liberdade que a gente nunca teve e eles não vão voltar porque já cresceram assim", diz Diorio. "Por isso os conservadores estão tão raivosos: já perceberam que a gente não vai recuar".
"Este governo já é uma resposta a isso. É o velho mundo tentando se manter neste novo mundo", arremata Vinagre.
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