Nick Cave realiza show catártico, homenageia SP e se rende a #elenão
Depois de 29 anos sem tocar no Brasil, o cantor e compositor australiano Nick Cave se apresentou neste domingo (14) no Espaço das Américas, em São Paulo, com sua banda The Bad Seeds. Uma espécie de catalisador do público, o músico de 61 anos, que muitas vezes evoca a figura de um pastor, viu sua performance ser tomada pelo clima de tensão política no país. Em diversos momentos do show a plateia entoou gritos de "ele não" e a situação escalou quando o músico tocou "The Weeping Song".
Antes de iniciar a canção, que cantou da plataforma ao centro da pista, Cave relembrou que morou em São Paulo, no início dos anos 90, disse que é uma cidade excepcional e declarou que neste momento "precisamos rezar pelo Brasil". Frequentemente interrompido pelos gritos contra Jair Bolsonaro, o cantor acabou concordando: "Vocês têm razão", disse. Também colocou o microfone na boca de uma fã para ela se manifestasse, até que enfim soltou o seu "ele não", para deleite geral.
Na quinta-feira, em entrevista coletiva realizada no hotel Fasano, Cave falou de Roger Waters, que também se manifestou contra o candidato do PSL em show na terça-feira passada, e o chamou de "babaca". No entanto, na sexta-feira, em uma conversa informal com a reportagem do UOL, no bar Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, Cave explicou que suas desavenças com o ex-Pink Floyd se dão principalmente pelo fato de que o inglês, que lidera o movimento Artists for Palestine UK (de artistas do Reino Unido a favor da Palestina), o pressionou a cancelar um show em Israel no ano passado.
"Ele age como se fosse a polícia do mundo", criticou o australiano. "Não me sinto à vontade de chegar em um país e dizer como as pessoas devem se posicionar, mas também sou a favor dos gays e das minorias", declarou.
Antes de iniciada a apresentação deste domingo, foi feita uma singela homenagem ao antigo tecladista dos Bad Seeds, Conway Savage --morto em setembro, aos 58 anos, por um tumor cerebral--, com sua imagem projetada no telão.
A banda entrou no palco com 15 minutos de atraso devido à longa e demorada fila que se formou na entrada do Espaço das Américas, com "Jesus Alone" e "Magneto", duas faixas do seu disco mais recente, "Skeleton Tree" (2016). Logo na sequência, mandou a épica "Higgs Boson Blues", com quase dez minutos de duração. O som da casa, que soava mal equalizado, foi devidamente ajustado e a partir da faixa seguinte, "Do You Love Me?", durante a execução da qual Cave se sentou ao lado de Warren Ellis no piano, e os Bad Seeds puderam brilhar.
A banda, que começou em 1983 como um quinteto de pós-punk liderado pelo guitarrista Mick Harvey, hoje, um septeto, mais parece uma orquestra sob o arco do multi-instrumentista Warren Ellis (ex-Dirty Three), que se mostrou um selvagem com o violino, com a guitarra ou ao piano. A banda operou em um crescendo constante, evoluindo de transições caóticas e propositalmente dissonantes a resoluções sublimes, como na violenta virada instrumental em "Jubilee Street". "Uma canção sobre as coisas que não se deve fazer", disse Nick Cave.
Na semana passada, viralizou um vídeo do YouTube no qual pastor Adélio rechaça Nick Cave, chamando-o de demônio, servo de Satanás e vampiro, traduzindo grosseiramente o nome dos Bad Seeds como "sementes do mal". Contradizendo o relato caricato, a apresentação do australiano em São Paulo mais pareceu um culto religioso em que se pregou o amor. Na balada "Into My Arms", também dedicada ao Brasil --um dos pontos altos do show, com Cave no piano--, o público vibrou com o verso "But I believe in love" (mas eu acredito no amor).
Durante toda a apresentação, o músico cantou junto à plateia, com as mãos para o alto ou segurando as mãos do público, feito um guru espiritual. "Eu chego em um show com cinco minutos de antecedência para colocar minha cabeça no lugar e para sentir a energia da multidão", declarou Cave na coletiva de quinta-feira. E a entrega realmente foi completa, como indicaram as diversas toalhas brancas que usou para se enxugar no palco. A essência punk do ex-vocalista da banda Birthday Party (1976-1983) se revelou nos improvisos urrados, nas caretas e nos olhares intimidadores que deferia ao público durante a performance.
A partir de "The Weeping Song", tal cataclisma atingiu outro nível. Para cantar "Stagger Lee" e "Push the Sky Away", as duas últimas antes do bis, Cave convidou dezenas de fãs para subirem ao palco e cantarem em coro. "Quero que vocês enlouqueçam", pediu. Também beijou um fã no rosto e cantou abraçado a outro. Saiu por apenas um minuto para tirar o paletó, voltou com um colete combinando com o costume preto e cantou "City of Refuge". E a purgação se consolidou por completo com a frenética "Mercy Seat". Então apresentou "Jack the Ripper" ("uma canção que eu compus em uma pequena casa na Vila Madalena", revelou) e encerrou com a estrelar "Rings of Saturn", somando quase duas horas e meia de apresentação.
Era perceptível que o músico estava emocionado por voltar a se apresentar no país depois de tanto tempo. Com status de rock star e com a casa, com capacidade para 8.000 pessoas, quase lotada, pôde exorcizar qualquer sombra de falta de reconhecimento que possa ter sido deixada pelos dois pequenos clubes em que tocou em 1989 e pelos anos de ostracismo na capital paulista. Nick Cave se mostrou um gigante e, diante de tamanha catarse proporcionada pela apresentação histórica, deixa o país definitivamente consagrado.
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