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Depoimento: Como acabei me tornando o filho que Mr. Catra não teve

Fernando Maia/UOL
Imagem: Fernando Maia/UOL

Matias Maxx

Colaboração para o UOL

10/09/2018 19h09

"Vai começar a putaria". Essa frase seguida da gargalhada registrada era como Mr. Catra abria a maioria de seus shows, fosse num baile funk de favela, no Prêmio Multishow ou numa casa de massagem. Um sorriso cheio de dentes e algumas casas cheias de filhos foi o personagem que ele passou para a maioria dos brasileiros que o conheceram mais através de memes e participações em programas humorísticos do que por sua vasta discografia. Mas ele era muito mais que isso: Catra se cercava de filhos como sempre se cercou de amigos, transitou livremente por onde quis e construiu muitas pontes entre morro e asfalto, Rio e São Paulo, rock e rap, funk e samba.
 
Os lacradores da internet já tentaram subjugar sua poligamia e vasta prole de forma negativa, sem enxergar que tudo que o Negão sempre quis foi distribuir amor. Ele assumiu todos seus filhos, adotou mais alguns, e até quando pôde sustentou uma rotina frenética de shows para poder prover todo mundo. Alguns acreditam que ele queria fundar uma nova civilização. Eu acredito que ele só queria retribuir o amor que teve.

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Nascido na favela e adotado por uma família de classe média alta, teve a oportunidade de se graduar em direito numa das melhores faculdades do país, enquanto do outro lado do morro seus pares seguiam as estatísticas encarcerados ou assassinados pela guerra às drogas. Não à toa, um de seus primeiros hits foi "Vida na Cadeia" e a paródia de "Sozinho", com o refrão "quando os vermes invade é claro que a gente luta" --uma das pedras fundamentais do funk proibidão, gênero polêmico do qual o próprio Catra se referia como funk consciente por retratar a dura realidade dos morros cariocas, uma crônica da favela para a favela, que nunca deveria ter descido para o asfalto.

Quem teve a oportunidade de dar um rolê com o Negão conheceu um homem íntegro, responsável, carismático, sábio, questionador e justo, um dos últimos bons malandros. Mas conquistar sua amizade nunca foi uma tarefa fácil, mais por sua rotina absurda do que qualquer outra coisa. Um revezamento de dezenas de shows por fim de semana, dezenas de filhos para curtir, uma sessão de estúdio em cima da outra e poucas horas de sono em horários erráticos ditavam seu dia a dia.

Eu o conheci quando fui fazer fotos para o documentário "Febre de Funk", há quase 20 anos. Na ocasião, ele deu uma canseira na produção, até finalmente confirmar a entrevista para dali a 20 minutos em um determinado ponto da descida do morro Santo Amaro. Corremos para lá, para encontrar uma rua vazia. Eis que ele surge pontualmente e nos deu uma entrevista de dez minutos sem sair de dentro do carro. Na época, uma das pautas era um factoide replicado pela imprensa carioca no qual uma jovem anônima teria engravidado num baile funk. E ele, notoriamente emputecido com a maneira incriminatória com que o funk sempre foi e ainda é tratado na imprensa, disse:

Se ela engravidou no baile funk é porque ela transou no baile funk. Baile funk não é lugar de transar. Transa lá quem é maluco.

Alguns anos, reportagens e documentários depois acabei virando quase um filho para o Catra. O "filho assessor de imprensa". Toda vez que algum veículo queria falar com ele, me procurava, e mesmo sempre tendo em mãos telefones pessoais dele e de sua produção, nunca foi tarefa fácil. Há uns dez anos, uma marca de uísque lançou uma campanha centrada em quatro ou cinco ícones da música brasileira, dentre eles o Catra, e eu fui contratado para escrever uma linha do tempo de sua carreira. Eu precisava de uma entrevista atualizada e ele marcou comigo na festa de reinauguração de um puteiro que ele tinha arrendado no centro do Rio.

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Mr. Catra cercado pelos filhos - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Mr. Catra cercado pelos filhos
Imagem: Reprodução/Instagram

Acompanhado de um punhado de filhos que davam suporte como MCs, DJ e motorista (um filho "careta"), toda semana ele revezava breves apresentações na boate com subidinhas aos quartinhos, bem acompanhado de duplas ou trios de funcionárias da casa. Eu ficava ali na escada, abordando ele com perguntas entre uma subida e outra. Além da entrevista, a marca também me escalou para fazê-lo assinar um contrato cedendo sua imagem para a campanha em troca de um cachê de R$ 7.000. Tive de voltar à casa mais umas duas ou três vezes para concluir a entrevista e fazê-lo assinar o contrato, e até onde eu sei ele nunca emitiu a nota fiscal para receber o tal cachê.

Há quase um mês tive o prazer de assinar a produção das filmagens no Rio da série "Funk.DOC", de Luiz Bolognesi para a HBO, e também intermediei a marcação em São Paulo de uma entrevista com o Catra. Nessa que é provavelmente a última ou uma de suas últimas entrevistas, Catra se define como sobrevivente de um genocídio cultural feito contra o funk no final dos 90. Ele se refere à perseguição que vários MCs sofreram na época, com censura, shows cancelados, prisão e até mortes misteriosas.

Décadas depois, o baile funk continua pautando fracassadas políticas de segurança pública e sensacionalistas páginas policiais, mas sua música ecoa em paredões de som e headphones de todo país, sendo o estilo mais ouvido pelo jovens brasileiros. Mr Catra é responsável por parte desse legado, não só por compor grandes hits do gênero mas principalmente por ser mentor, inspirador e parceiro de vários artistas como Valesca Popozuda, Tati Quebra Barraco, MC Carol, Filipe Ret e Marcelo D2.

Sem se preocupar com julgamentos alheios, Mr. Catra viveu como quis e morreu com integridade, e seja lá para onde ele vai agora só uma coisa é certa: "Vai começar a putaria".

Descanse em paz, paizão!