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Gostou de "The Handmaid's Tale"? Preste atenção neste livro (e futura série)

Capa do livro "O Corpo Dela e Outras Farras", de Carmen Maria Machado - Divulgação
Capa do livro "O Corpo Dela e Outras Farras", de Carmen Maria Machado Imagem: Divulgação

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

03/09/2018 04h00

O corpo da mulher está na pauta do dia, seja na política, na TV ou na literatura. Não à toa, “The Handmaid’s Tale”, cuja segunda temporada estreou no Brasil neste domingo (2), é uma das séries mais faladas nos últimos tempos, indicada a 16 Emmys este ano e vencedora de oito no ano passado.

O sucesso também trouxe de volta às listas de mais vendidos o livro no qual a produção se inspira: “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, lançado há mais de 30 anos. Nessa esteira, outras autoras que imaginaram um futuro distópico –ou um presente surreal para a vida das mulheres– estão despertando o interesse do público e das editoras.

Uma delas é a norte-americana Carmen Maria Machado, cuja coletânea de contos “O Corpo Dela e Outras Farras” acaba de ser publicado no Brasil, depois de entrar na lista de melhores livros de 2017 do The New York Times e de ser finalista a um dos prêmios literários mais prestigiosos dos Estados Unidos, o National Book Awards. Se “The Handmaid’s Tale” te pegou, é bom ficar de olho no livro de Machado, que também irá para a TV em breve.

Corpo político

Assim como as personagens de Atwood, antes de Gilead –o país criado em parte dos Estados Unidos depois de um golpe fundamentalista cristão– alterar completamente suas vidas, as mulheres que povoam as histórias de Machado também têm vidas banais, até que elementos insólitos bagunçam a ordem das coisas.

Uma fita verde no pescoço que não pode ser tocada nem retirada, uma doença misteriosa que aos poucos vai dizimando a população dos EUA, duas mulheres que geram uma criança, mulheres que misteriosamente começam a perder seus corpos e outras coisas assim vão transformando em fantasia ou distopia as pequenas e grandes violências que a parcela feminina da população sofre diariamente.

Como em “The Handmaid’s Tale”, tudo gira em torno do corpo. Na série e no livro de Atwood, os corpos das mulheres são objeto de total controle, chegando ao extremo de instituir uma classe de mulheres férteis que servem basicamente como reprodutoras. Questões como direitos reprodutivos, aborto e direitos políticos são colocadas explicitamente.

Já no livro de Machado, são as próprias mulheres que acabam incorporando as violências e opressões dentro de seus corpos e mentes, e o mundo da política e da economia serve apenas como um pano de fundo difuso. Na história criada por Atwood, uma violência externa e explícita se impõe com leis e punições severas. Nas histórias de Machado, são violências e opressões sutis que se escondem à vista de todos.

“Penso no corpo dentro daquela ideia de que o corpo é um campo de batalha”, diz Machado em entrevista ao UOL. “Em última instância, todas as batalhas que estamos travando politicamente são batalhas pelo corpo. Por isso era importante para mim”, conta ela, que admite alguma afinidade com “O Conto da Aia”.

“Acho que existe uma conexão no fato de que ambos são trabalhos que lidam com as dificuldades das mulheres. Gosto da Margaret Atwood, ela com certeza é uma das minhas muitas influências. Mas concordo que são tipos diferentes de dificuldades, é uma maneira diferente de pensá-las.”

A autora não estranha o fato de seu trabalho ter conexões com outro lançado há mais de 30 anos. Ela apenas lamenta que machismo, desigualdade e violências contras as mulheres ainda sejam temas relevantes hoje.

“Quando meu livro saiu, o timing foi muito curioso, havia o Time is Up, e #MeToo, e todo mundo dizia que meu livro tinha chegado na hora certa, mas comecei escrever há sete anos! Para mim, esses assuntos são persistentes. As vidas das mulheres sempre foram terríveis e continuam a ser terríveis de outras formas, e essa narrativa vai continuar fresca e relevante mesmo daqui 20 ou 50 anos. Era relevante há 50 anos. É deprimente, mas há um elemento atemporal nesse tipo de sofrimento”, pondera.

A escritora Carmen Maria Machado em cerimônia do National Book Awards, em novembro de 2017 - Dimitrios Kambouris/Getty Images - Dimitrios Kambouris/Getty Images
A escritora Carmen Maria Machado
Imagem: Dimitrios Kambouris/Getty Images

Irrealismo

Outro ponto que une “O Corpo Dela e Outras Farras” a “The Hadmaid’s Tale” é o cenário que foge do realismo. Ele também explora a distopia, mas flerta mais com a fantasia e o terror e os usa para evidenciar o quanto alguns tipos de opressões contra as mulheres, que se tornaram banais, na verdade são totalmente incomuns.

“Acho que esse é o poder do terror”, diz a escritora. “As pessoas pensam no terror como um gênero menor, banal, o que acho extremamente injusto, porque o terror tem potencial para nos mostrar muitas coisas de uma maneira afiada. (O filme) 'Corra!' é um ótimo exemplo de como um cineasta pode usar o racismo no terror, não apenas o racismo óbvio, mas também muito sutil, o racismo liberal, o racismo que não tem contornos nítidos, não é o Ku Klux Klan. Os vilões são uma branquitude mais liberal e sutil etc. E funciona muito bem.”

“Acho que o terror pode ser usado da mesma forma em relação às mulheres. Você pode usar as características do gênero para criar um espaço para explorar as nuances sutis das experiências das mulheres”, argumenta.

“Black Mirror” feminista

Com temas tão quentes e que estão sendo amplamente discutidos, “O Corpo Dela e Outras Farras” já teve os direitos de adaptação comprados para a TV pela produtora do cineasta Ron Howard. Gina Welch, roteirista de séries como “Feud” e “Ray Donovan”, vai comandar o projeto, que vem sendo vendido como um “‘Black Mirror’ feminista” e está em fase inicial de desenvolvimento, ainda sem previsão de estreia.

“Acho que a ideia é que 'Black Mirror' é um tipo de ficção-científica de terror que tem pensatas. Acho que essa é a comparação”, explica Machado. “Em 'Black Mirror', o terror é uma maneira de examinar nossa relação com a tecnologia. E no meu livro, e espero que também na série de TV, o terror é uma maneira de examinar nossa relação com questões de gênero.”