Harper Lee, dois livros e duas escritoras completamente diferentes
Um dos grandes clássicos da literatura norte-americana moderna, "O Sol É para Todos", de Harper Lee, merece o status que tem. Li a obra pela primeira vez só recentemente, interessado pelo barulho que "Vá, Coloque um Vigia", da mesma autora - que morreu nesta sexta-feira (19), aos 89 anos -, provocou quando chegou às livrarias no ano passado, cinco décadas depois do lançamento do romance original.
Lidos na sequência, no entanto, parecem ter sido escritos por pessoas diferentes. "O Sol É para Todos" recompensa a leitura por, entre outras coisas, acompanhar gradualmente o amadurecimento da narradora - uma garotinha criada em um subúrbio classe média dos EUA, que vai aos poucos descobrindo o que é se tornar adulta ao mesmo tempo em que acontecimentos ao redor se contrapõem com a visão idealizada que tem do pai, advogado público responsável por defender um rapaz negro acusado de estuprar uma branca na comunidade.
É um romance embebido na moral cristã e iluminado por questões éticas que ajudam a reforçar a visão de justiça e democracia que a América faz dela mesma -- não à toa, a obra vem sendo lida por gerações e gerações desde seu lançamento e Atticus Finch, o pai-herói da história, chegou até a influenciar no batismo de inúmeros bebês nascidos no país nas últimas décadas.
Como retrato histórico, "O Sol É para Todos" também agrada ao transportar o leitor para a primeira metade do século 20, no Sul do país, onde a herança escravagista ainda resistia, apesar do ímpeto modernizador e progressista que adornava os belos jardins esverdeados das famílias brancas que se conheciam pelos nomes, visitavam-se e bisbilhotavam-se. O contraste de registros de linguagem entre a empregada negra da casa e a menina narradora, uma das poucas a transitar tranquilamente entre esses dois mundos, é outro ponto alto da leitura.
Há quem ache que isso tudo soe careta, mas o livro é o que é - talvez por isso mesmo, tenha funcionado por tanto tempo, para tantas gerações e classes sociais distintas. Até o ano passado, quando uma "revelação" abalou as crenças de todos aqueles que guardavam com carinho as lembranças da obra original: esqueça tudo o que você leu, o herói da história na verdade é um racista simpatizante do nazismo e a garotinha, tão fofa, agora é uma jovem adulta chata de galochas que estuda em Nova York e volta entediada à cidade passar férias com o pai.
Fossem só essas guinadas radicais nos perfis dos personagens, "Vá, Coloque um Vigia" poderia até ser interessante, uma bela e arriscada jogada da autora que, aos 80 e tantos anos, resolve chacoalhar as convicções de seus leitores e mostrar que o mundo não é tão justo e colorido quanto se poderia imaginar.
O mundo mudou nesses últimos 50 anos. A Guerra fria acabou. Os heróis não são tão heróis assim, os vilões históricos merecem alguma revisão, vá lá. O problema é que "Vá, Coloque um Vigia" não soa novo, revigorado, antenado com os tempos. Antes, parece mais uma obra requentada, com algumas passagens constrangedoramente idênticas, sem muito do charme literário da obra original, uma espécie de "e se" escrito na mesma época, mas relegado de propósito ao fundo de uma gaveta da qual provavelmente não deveria ter saído.
O mundo mudou, é verdade. Mas uma das principais características do mundo do entretenimento e da cultura, hoje, é que ele não é capaz de deixar nada de lado. Não existe material esquecido. Não existe manuscrito inacabado cuja poeira não possa ser assoprada e transformado em um novo produto, pronto para ser embalado e consumido pelas massas. E para isso, poderia haver slogan melhor - e mais batido - do que "Esqueça tudo o que você sabia sobre..."?
Em entrevista ao UOL em julho do ano passado, Charles Shields, biógrafo de Harper Lee, explicou que, de fato, a nova obra é mais próxima da intenção original da escritora do que a história que foi contada em "O Sol É para Todos". Segundo ele, Lee fazia questão de que o advogado da história fosse também um racista, para denunciar o pensamento antiabolicionista que ainda sobrevivia no Sul dos EUA naquela época. As mudanças radicais na obra teriam sido feitas pela editora de Lee na época, conhecida por seu pulso firme e educação notadamente cristã/liberal.
A pergunta que cabe aqui é: preferências morais e políticas à parte, qual das duas obras, lidas à revelia dos interessantíssimos acontecimentos históricos que as cercam, se sustenta melhor como peça literária? Em 99% dos casos, é razoável dizer que conhecemos os autores por seus livros. Não esqueçamos, portanto, que estes mesmos livros, invariavelmente, passam pelo crivo e pelo tratamento de um ou mais editores. Por mais tentador que seja acreditar na ideia do editor como o grande vilão da história, no caso de Harper Lee e seus dois únicos romances publicados em vida, creio que sua editora tenha sido a grande heroína da história.
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