Editora transformou personagem racista de Harper Lee em herói, diz biógrafo
Imortalizado pela escritora Harper Lee no romance “O Sol É para Todos”, o personagem Atticus Finch foi do céu ao inferno nas últimas semanas, desde o lançamento do polêmico “Vá, Coloque um Vigia" ("Go Set a Watchman", no original), obra dada como “perdida” pela americana e que recentemente foi redescoberta e publicada.
Na nova história, que se passa 20 anos após os acontecimentos da primeira, o advogado acima de qualquer suspeita, que virou herói nacional ao defender um homem negro acusado injustamente de estupro, é retratado como um sujeito racista, ex-frequentador do Ku Klux Klan.
Para o principal biógrafo da autora, Charles Shields, a surpreendente guinada de Finch, no entanto, nunca ocorreu. Para a frustração de milhares de americanos que há 55 anos batizam seus filhos com o nome do personagem, foi desse jeito, com caráter desprezível, que Harper Lee o concebeu inicialmente. Era uma forma de denunciar o pensamento antiabolicionista que ainda sobrevivia no Sul dos Estados Unidos nos anos 1950, quase cem anos após o fim da escravidão.
Rejeitado no fim dos anos 1950, o texto de forte teor autobiográfico de “Vá, Coloque um Vigia" sofreu três grandes alterações, promovidas pela editora de Lee na J. B. Lippincott, Tay Hofhoff, uma mulher de pulso firme e educação notadamente cristã/liberal. As mudanças, que também transplantaram a narrativa para o olhar da menina Scout, deram origem a “O Sol É para Todos”.
“Ela havia lançado uma biografia em 1959, um ano antes de ‘O Sol’, sobre um americano abolicionista assassinado por causa de sua crença. O Atticus Finch do livro é mais John Lovejoy Elliott do que A.C. Lee, o pai de Harper”, diz ao UOL o escritor, via e-mail.
Extremamente crítico ao real valor literário da nova obra, Shields agora nega as especulações—levantadas por ele mesmo no início do ano— de que a autora teria sido manipulada pela advogada, Tonja Carter, para lançá-la sem consentimento.
Segundo o biógrafo, “Vá, Coloque um Vigia" só não foi lançado antes por uma mera questão familiar. “Era a irmã mais velha dela, Alice, que não queria que o livro fosse publicado. Ele apresenta um retrato extremamente pouco lisonjeiro de seu pai.”
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
UOL: “Vá, Coloque um Vigia” faz jus ao legado de Harper Lee?
Charles Shields: Eu não admiro nada nele. Não tem mérito literário. Tem um arco dramático plano, os personagens quase não mudam, não há escolhas morais feitas. E, mais dolorosamente, o narrador concorda com os vulgares comentários racistas que são inconcebíveis no mundo de hoje. O livro é apenas um evento cultural. Se não tivesse o nome de "Harper Lee" na capa, não teria sido publicado.
Ele foi mesmo escrito antes de “O Sol É para Todos”?
Sim. “Vá, Coloque um Vigia” é o primeiro projeto, concluído em 1957, de “O Sol É para Todos”, que foi publicado em 1960. Ele sofreu mudanças extensivas por uma editora liberal, educada sobre os preceitos da Sociedade Religiosa dos Amigos, chamada Tay Hofhoff.
Ela havia lançado uma biografia em 1959, dois anos antes de ‘O Sol’, sobre um americano abolicionista assassinado por causa de sua crença. O Atticus Finch do livro é mais John Lovejoy Elliott do que A.C. Lee, o pai de Harper.
Harper queria que o livro fosse publicado?
Era irmã mais velha de Harper Lee, Alice, que não queria que o livro fosse publicado. A primeira versão de “O Sol É para Todos” apresenta um retrato extremamente pouco lisonjeiro de seu pai, e o comportamento do narrador em relação a ele é perturbador e desrespeitoso. Mas depois que Alice morreu, aos 103, em novembro passado, a senhora Lee e seus confidentes poderiam fazer o que quisessem. O resultado é “Vá, Coloque um Vigia”.
Ela temia novas interpretações do personagem?
Aparentemente, não. Se ela soubesse que os pais se arrependeriam de nomear seus filhos de Atticus, por que ela ficaria tão ansiosa para publicar?
O que significa ter um Atticus racista? Isso não poderia fazer parte da persona complexa da escritora?
Não. “Vá, Coloque um Vigia” é basicamente um pedaço de relatos do extremo sul dos EUA, com leve toques ficcionais. É um livro autobiográfico. Um livro de memórias cheio de raiva. Ela descreve as atitudes raciais do Sul sem desculpas, mas como se estivesse dizendo: "Bem, esse é o jeito que é".
A peça de ficção teria sido mais sutil. Romances sobre o Sul de Carson McCullers e William Faulkner, e contos de Flannery O'Connor e Eudora Welty são infinitamente mais hábeis em nos ajudar a compreender a natureza da vida no Sul.
Há a chance de Harper sempre ter tido a noção da atitude racista do personagem e, depois, simplesmente tê-la negado?
Não. Quando uma documentarista, a Mary Murphy, perguntou a ela no início do ano se ela queria que o livro fosse lançado, ela disse: “É claro, boba”. Sem negações, sem pedido de desculpas.
Poucos no Brasil conhecem a obra de Harper Lee. Qual a importância dela para a literatura?
A Harper Lee de “Vá, Coloque um Vigia” faz uma pergunta que desafia todas as sociedades: Como podemos aceitar as pessoas que são diferentes de nós? Não apenas tolerá-las, o que geralmente leva a ressentimentos. Mas aceitá-las ao fazermos um esforço para entender o que a vida pode ser.
No final de “O Sol É para Todos”, o pai da narradora, o advogado Atticus Finch, tem que fazer uma escolha: manter-se a lei ao pé da letra, o que causaria muita dor para um excluído, ou exercer a verdadeira justiça, temperada pela misericórdia, que vem da empatia por outro ser humano. Ele opta por não processar o homem, que é a escolha moral mais elevada.
Por que ela não lançou outros livros depois de “O Sol É para Todos”?
Ela tinha uma história para contar, sobre seu pai. Era a mais importante história de sua vida. A editora, uma mulher mais velha que a ajudou a transformar “Vá, Coloque um Vigia" em “O Sol É para Todos”, como resultado de três grandes revisões, aposentou-se depois. A senhora Lee não conseguiria escrever outro romance sem a ajuda dela.
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