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Violência em Paraty: o que fez Roberto Saviano cancelar presença na Flip

Rodrigo Casarin

Do UOL, em Paraty (RJ)

04/07/2015 12h49

Paraty é uma cidade linda. Abraçada pelas verdes montanhas da Mata Atlântica e o mar, suas ruas feitas de pedras exalam história. A cada esquina dobrada, um novo cartão postal se revela. Faz bem para os olhos estar por aqui. Contudo, esta é apenas a versão mais divulgada da realidade do lugar.

O jornalista italiano Roberto Saviano não veio para a Flip alegando falta de segurança. Não se sabe, no entanto, o que exatamente motivaria a preocupação, se alguma situação na Europa ou se outra realidade de Paraty, muito diferente daquela procurada pelos turistas.

Paraty é uma cidade de extrema violência – a terceira mais violenta do estado do Rio de Janeiro -, com bairros dominados pelo Comando Vermelho e o Terceiro Comando. Durante a Flip, é comum esbarrarmos com policiais andando com fuzis entre os artistas de rua e o público do evento. Conforme anoitece, o Centro Histórico, aos poucos, é cercado por viaturas com seus giroflexes vermelhos ligados. Isso apenas evidencia o medo de que algo aconteça com os turistas.

Mas sempre há riscos, claro. No dia 19 de maio deste ano, por exemplo, Carlos José Gama Miranda, o Casé, prefeito da cidade, levou um tiro na cabeça ao deixar a prefeitura, por volta das 19h. Para sua sorte, a bala pegou de raspão; o atirador, porém, não foi identificado. Outro exemplo? No domingo de carnaval deste ano bandidos trocaram tiros em plena Praça da Matriz, um dos principais endereços de Paraty. Um homem morreu e dez pessoas ficaram feridas. Na edição do ano passado da Flip uma perseguição com troca de tiros também aconteceu a poucas quadras da Tenda dos Autores.

O escritor Ronaldo Bressane

  • J.R. Duran/Divulgação

    Todo tempo tem troca de pipoco em uma rua entre a Mangueira e a Ilha das Cobras (...) Paraty é fruto do espólio. Espólio do ouro, dos escravos, do café e agora do turismo

    Ronaldo Bressane, Escritor que morou em Paraty durante três meses
Cidade cenográfica e violenta
Quem viveu nessa realidade durante três meses no primeiro semestre deste ano foi o escritor Ronaldo Bressane, que passou o período em Paraty a convite do programa Residência Literária do Sesc. A ideia era que, imerso na cidade, o autor deixasse o lugar com um livro escrito sobre os braços. Assim nasceu “Escalpo”, que está em fase de edição, a história de um ilustrador desempregado, recém-separado, que recebe um estranho convite para encontrar a filha de um homem que não a via há quarenta anos, o que leva o desenhista a uma viagem pela América Latina.

Ao escrever, Bressane colocou muito do que viu em Paraty – um lugar que define como “cenográfico e violento, que evidencia todos os contrastes existentes no Brasil” - em seu livro, ainda que de forma deslocada. Um personagem inspirado em alguém local pode ter sido retratado como se fosse de Buenos Aires, por exemplo.

“Todo tempo tem troca de pipoco em uma rua entre a Mangueira e a Ilha das Cobras”, conta Bressane, falando de dois bairros periféricos da cidade, onde vivem cerca de 20 mil pessoas, cerca de metade da população de Paraty, cada um dominado por uma das facções criminosas citadas acima.

O escritor vê a Flip como uma das bolhas isoladas da verdadeira realidade da cidade. “Paraty é fruto do espólio. Espólio do ouro, dos escravos, do café e agora do turismo”, diz. Encontrou outras bolhas semelhantes, claro. O condomínio Laranjeiras, exemplifica, reúne 150 casas, mas apenas uma família vive ali durante o ano todo. Lá dentro, há carrinhos de golfe que levam as pessoas de um lugar a outro, inclusive para a marina particular. Uma das grandes preocupações dos funcionários parece ser garantir que ninguém jamais pise no sempre bem cuidado gramado.

Roberto Saviano, jornalista e escritor, autor do livro "Gomorra", posa para foto após entrevista coletiva, em Barcelona (Espanha) - Alberto Estévez/Efe - Alberto Estévez/Efe
Roberto Saviano, jornalista e escritor, autor do livro "Gomorra", foi jurado de morte pela máfia italiana
Imagem: Alberto Estévez/Efe
"Faixa de Gaza"
Simbólico é o aeroporto da cidade, apelidado, não por acaso, de “Faixa de Gaza”. É ali que os poderosos pousam com seus aviões particulares e, em seguida, rumam para suas isoladas mansões, acomodadas em condomínios como o Laranjeiras. A pista de pouso serve como uma exata divisão da Paraty idílica da Paraty violenta: de um lado estão as áreas nobres, de outro, os bairros pobres, onde a venda de drogas – comercializadas a moradores e turistas, evidentemente – impera. O consumo de crack é outro grande problema local.

Para esses bairros mais pobres os caiçaras vêm sendo constantemente forçados a se mudar, aliás. A especulação imobiliária na cidade é forte, o que faz com que antigos moradores, pressionados pelo poder do dinheiro, tenham que deixar os lugares onde historicamente vivem para procurar opções, digamos, menos privilegiados, onde invariavelmente, estão mais próximos do crime. As partes belas devem sempre estar à disposição dos turistas.

É em meio a toda essa violenta complexidade que ocorre o evento literário de maior prestigio no país. “O Brasil vive de uma cultura de eventos, e a Flip não conseguiria resolver os problemas do lugar magicamente. É legar ter uma Casa Azul [associação que organiza a festa e realiza programas sociais e atividades culturais na cidade] na Ilha das Cobras, seria como se o Instituto Moreira Salles, em São Paulo, abrisse algo no Capão Redondo, só que ainda é muito pouco, já que o estado não está lá”, opina o escritor sobre a relevância da festa e sua possível capacidade de promover mudanças.

Se Bressane acredita que Saviano estaria em risco ao vir a Paraty? “Não sei se a Camorra iria acionar o Comando Vermelho. Não sei se correria riscos maiores do que os que já corre normalmente”. Pode até ser. Mas, diferente do que Marcelino Freire bradou em sua mesa, que os brasileiros gostariam apenas de abraçar e beijar o jornalista italiano, ao olhar para a realidade da cidade onde a Flip acontece Saviano teria sim o que temer.