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Análise: Manoel de Barros dedicou a vida a escrever poesia sobre o nada

O poeta Manoel de Barros, que morreu nesta quinta-feira - Tuca Vieira/Folha Imagem
O poeta Manoel de Barros, que morreu nesta quinta-feira Imagem: Tuca Vieira/Folha Imagem

Guilherme Soares Dias

Do UOL, em São Paulo

13/11/2014 13h41

A vida de Manoel de Barros foi dedicada ao nada. Era para isso que ele prestava. Chegava a sofrer moralmente por só fazer coisas inúteis. Os livros sobre nada de Manoel de Barros tinham poesia, cores, paisagens, palavras inventadas e muita beleza singela. Ele completaria 98 anos em dezembro, mas ainda era uma criança. Só teve infância, como ele mesmo diz em seus poemas. Manoel morreu nesta quinta (13), mas há meses a infância tinha entardecido: já não escrevia, não falava, enxergava mal e se alimentava por aparelhos.

Foi o poeta brasileiro que mais publicou livros --foram 34 ao todo. Sua escrita era comparada a de Guimarães Rosa, ganhou dois prêmios Jabuti, mas nada disso o lisonjeava. Cada vez que publicava um livro fugia desonrado para o Pantanal, onde era abençoado por garças.

Nasceu no Beco da Marinha, em Cuiabá, a capital do Mato Grosso, e mudou-se para o vizinho Mato Grosso do Sul no começo da infância. Radicou-se em Corumbá, que ganha a alcunha de capital do Pantanal por ser o maior e mais populoso município dessa região alagada.

Mas ele gostava mesmo das partes isoladas, a fazenda em que cresceu e era seu universo predileto. Foi criado entre bichos de chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. Gostava de viver em lugares decadentes, por apreciar estar entre pedras e lagartos. “Só as coisas rasteiras me celestam”, escrevia. Na idade adulta, vivia em um mundo pequeno, com um rio e um pouco de árvores.

Manoel teve um ídolo: Bernardo. O capataz da fazenda que enriquecia a natureza com sua incompletude. Manoel dizia que Bernardo era quase árvore. E o que seu silêncio era tão alto que os passarinhos escutavam de longe. O capataz trabalhava na fazenda que Manoel tinha herdado e que o sustentava. Não apenas de dinheiro, mas de poesia. Era lá que ele se alimentava do Pantanal. Mas não era, segundo ele próprio, poeta de natureza, ecológico ou criador de folclore.

Infância e reclusão

Seu primeiro professor de “agramática” foi o padre Ezequiel, que percebeu o gosto do adolescente Manoel, aos 13 anos, por nadas. O menino receoso percebia que gostava dos defeitos das frases, e o padre alertava que isso poderia tornar-se virtude.

Em 1937, chegou a ir para o Rio de Janeiro, onde morou por 12 anos e publicou os primeiros livros. Tímido, ele não frequentou o círculo de grandes escritores, apesar de ter tentado, sem sucesso, se aproximar de Clarice Lispector e Manoel Bandeira. Foi lá que conheceu Stella, a companheira da vida com quem teve três filhos. Quando o pai morreu de infarto, ele herdou a fazenda Santa Cruz, no Pantanal e mudou para lá. Foram anos no lugar. Isolado. Entre lagartos e rios.

O pantaneiro dizia que do que escrevia, só 10% era mentira, o resto era imaginação. A frase ficou eternizada, dando nomes a peça de teatro e documentário sobre ele. Recluso, Manoel não dava entrevistas. O ser biológico não interessava, só o letral, dizia. Com raras exceções, falava com o amigo jornalista Bosco Martins, que escrevia para revistas como “Caros Amigos” e “Bravo”.

Nunca foi ao “Roda Viva”, ao “Programa do Jô”, mas topou falar com o diretor Pedro Cézar para um documentário sobre ele, após o cineasta dizer que “era só um sonho”. Lançado em 2010, o filme mostra o poeta ainda produzindo. “Eu falo e escrevo absurdez. A palavra oral não dá rascunho”, dizia, justificando a aversão a entrevistas.

Na escrita, Manoel pretendia dar sentido literário aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres. Seu cuidado era para que as palavras não caíssem nos louvamentos à exuberância do Pantanal, não descambando no adjetivamento excessivo. Queria ser amparado por substantivos –verbais– como ele destacava, sem ser engolido pelo cenário.

Documentário "Só Dez por Cento é Mentira" retrata Manoel de Barros

Heranças

Além das agruras da idade, que insistiam lembrar que não era mais a criança entre bichos e paisagens, tinha perdido os dois filhos, João, aos 50 anos, em um acidente aéreo em 2007, e Pedro, que sofreu três derrames e morreu no ano passado. Deixa a esposa, Stella, companheira de uma vida e a filha, Martha, que cuida dos direitos autorais.

A partir de 2015, os livros de Manoel ganham novo selo e serão editados pela Alfaguara, da editora Objetiva. O anúncio foi feito há poucos dias. Até este ano, sua obra era publicada pela Leya. O poeta guarda no “lugar de ser inútil”, o escritório onde escrevia em sua casa, seus cadernos de rascunhos escritos a lápis que nunca foram publicados. Os versos soltos compuseram livros anteriores, mas muitos deles podem chegar ao público só, agora, após a morte do poeta.

Em Campo Grande, uma avenida que liga ao centro administrativo estadual, chamado de Parque dos Poderes, já ganhou o nome de “do poeta”, à espera da morte de um dos maiores escritores locais para ganhar seu nome –uma lei proíbe homenagem a pessoas vivas. Hoje a família, os amigos e leitores sofrem da “dor de árvore”.

Manoel de Barros2

  • A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei. / Meu fado é o de não saber quase tudo. / Sobre o nada eu tenho profundidades. / Não tenho conexões com a realidade. / Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. / Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). / Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. / Fiquei emocionado. / Sou fraco para elogios.

    Manoel de Barros