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O que é fato e o que é ficção na série "Chernobyl", nas palavras de um ex-funcionário da usina

Cena da série "Chernobyl" - Reprodução
Cena da série "Chernobyl" Imagem: Reprodução

11/06/2019 14h53

Série de TV "Chernobyl" se tornou o programa mais bem avaliado de todos os tempos (nota 9,6), segundo o site do IMDB, baseado na opinião de 211 mil usuários.

O drama produzido por HBO e Sky conta em cinco episódios a história de um dos piores desastres nucleares da história: a explosão do reator 4 da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia sob domínio soviético, em 1986.

Mas quão precisa é a versão televisiva do desastre, em comparação ao que realmente aconteceu? Oleksiy Breus é um ex-operador da usina que estava trabalhando na sala de controle do reator 4 na manhã de 26 de abril de 1986.

Horas antes, uma reação levou à explosão do reator e do telhado, lançando uma nuvem de material radioativo que atingiu outras partes da União Soviética, incluindo Rússia, Bielorrússia e outros lugares no Norte da Europa.

"Quando vi o que havia acontecido, fiquei surpreso por eles terem nos levado até lá. O reator parecia tão danificado que não havia o que ser feito", disse ele.

Em entrevista à BBC ucraniana, Breus explicou o que foi contado de modo preciso na série e o que é "licença artística" da atração aclamada pela crítica.

Nikolai Fomin em Chernobyl - Arte/UOL com Getty Images - Arte/UOL com Getty Images
Nikolai Fomin em Chernobyl
Imagem: Arte/UOL com Getty Images

'Eles não eram vilões'

Segundo Breus, a série capta com precisão o clima e as emoções poderosas nos momentos que se seguiram à explosão, que matou 31 pessoas na hora e outras milhares depois por causa da exposição à radiação.

"A catástrofe é descrita de uma forma bastante poderosa, como uma tragédia global que afetou um grande número de pessoas", disse ele.

Breus, no entanto, critica a forma como a série retrata o então diretor de Chernobyl, Viktor Bryukhanov, o engenheiro-chefe, Nikolai Fomin, e o engenheiro-chefe adjunto, Anatoly Dyatlov.

"Seus personagens são distorcidos e deturpados, como se fossem vilões. Eles não eram nem um pouco assim", afirma.

De acordo com o antigo operador de Chernobyl, Dyatlov era bastante rigoroso, o que provavelmente fazia com que ele parecesse mau aos olhos dos subordinados, mas essa percepção mudaria mais tarde.

"Os operadores tinham medo dele. Mas, por mais rigoroso que fosse, ele ainda era um profissional de alto nível."

Em julho de 1987, esses três homens foram considerados culpados de violação grosseira dos regulamentos de segurança, criando as condições que levaram à explosão na usina.

Outros personagens

Breus diz também que a série tomou algumas liberdades criativas ao levar alguns personagens à tela.

Na série, Valeriy Legasov é um químico nuclear que integra a equipe enviada a Chernobyl, mas na realidade ele raramente era visto circulando por ali. "Seu local de trabalho era um bunker sob o prédio da administração."

A atriz Emily Watson interpreta Ulana Khomyuk, física nuclear soviética que tenta descobrir como e por que o desastre de Chernobyl aconteceu. Ela não é um personagem real, mas, nas palavras da própria atriz, "uma amálgama dos cientistas [reais] que trabalharam no desastre".

Cena da série "Chernobyl" - Reprodução - Reprodução
Cena da série "Chernobyl"
Imagem: Reprodução

Peles vermelhas

Breus elogia o modo como a série mostrou os efeitos da radiação nos corpos das vítimas. "Muitas pessoas falaram sobre exposição à radiação, pele vermelha, queimaduras de radiação e queimaduras de vapor, mas nunca haviam sido mostradas assim."

Logo após a catástrofe, o ex-operador falou com duas pessoas que também aparecem na série: o colega Leonid Toptunov e o líder do turno, Oleksandr Akimov. "Eles estavam claramente doentes, muito pálidos. Toptunov estava literalmente branco."

Ambos os homens morreram em um hospital de Moscou com síndrome de radiação aguda. "De manhã, vi outros colegas que trabalharam naquela noite. A pele deles tinha uma cor vermelha brilhante. Mais tarde, eles morreriam em um hospital em Moscou", lembra.

'Não havia fogo'

Após a explosão na usina, equipes de bombeiros foram enviadas para o reator. Segundo a história narrada na série de TV, eles foram até o telhado para apagar o incêndio causado pela explosão. Mas Breus diz que essa parte é ficção.

"O fogo no telhado é um mito", diz. Houve incêndios, mas não no telhado - o que, no entanto, não tornou o trabalho dos bombeiros menos perigoso.

A maioria das 29 pessoas que morreram nas duas semanas seguintes ao desastre eram bombeiros que estavam ali para canalizar a água até o reator danificado. Era uma tarefa quase impossível, afirma Breus. "O fluxo de água que os bombeiros despejaram provavelmente evaporou antes mesmo de chegar ao reator."

Ponte da Morte

Na série de TV, moradores da cidade vizinha de Pripyat correm para a ponte ferroviária a fim de ter uma visão melhor do incêndio, sem saber dos perigos da exposição à radiação.

Crianças até brincam com o pó radioativo que caía do céu como neve.

Esta ponte depois foi apelidada de Ponte da Morte, e o seriado repete os rumores há muito esquecidos de que todos aqueles que testemunharam os eventos dali morreram como resultado da exposição à radiação.

Autoridades negam que isso tenha acontecido, visão partilhada por Breus. Segundo ele, a maioria dos moradores de Pripyat teria descoberto o incidente na manhã seguinte à explosão.

Breus afirma que conhecia algumas pessoas que foram à ponte e, embora tenham apresentado problemas de saúde após a exposição à radiação, eles ainda assim sobreviveram.

"No hospital, fui tratado ao lado de um sujeito que pedalou até a ponte na manhã de 26 de abril. Ele foi diagnosticado com um tipo leve de síndrome de radiação aguda."

Jared Harris e Stellan Skarsgård em cena de "Chernobyl" - Reprodução - Reprodução
Jared Harris e Stellan Skarsgård em cena de "Chernobyl"
Imagem: Reprodução

Mineiros pelados

A série da HBO mostra também mineiros cavando um túnel sob o reator em uma tentativa de evitar uma tragédia maior.

A missão deles era abrir espaço no solo para a instalação de um trocador de calor. Isso impediria que o núcleo derretesse e contaminasse para as águas subterrâneas, afetando milhões de pessoas.

Por causa das altas temperaturas no local, eles ficam nus na série. Mas Breus contesta a versão. "Eles tiraram suas roupas, mas não como foi mostrado na TV", diz ele. "A história dos mineiros foi uma daquelas que se revelaram irrelevantes e desnecessárias."

Os mineiros foram protegidos da radiação pelo túnel subterrâneo, mas foram expostos quando saíam para fumar ou beber água. O trabalho acabou sendo infrutífero: em seis semanas o núcleo derretido esfriaria por si mesmo e o nitrogênio líquido não chegou a ser bombeado para o trocador de calor.

"Quem iria aplaudir isso?"

Em outra cena dramática da série de TV, três trabalhadores de usinas de energia se voluntariam para mergulhar nas galerias inundadas sob o reator danificado e abrir uma válvula para drenar a água.

As autoridades estavam preocupadas com uma nova explosão caso a "lava" do reator fundido atingisse a água. Conta-se que os três "mergulhadores" morreram de doença da radiação como consequência. Mas todos, na verdade, sobreviveram.

O líder da manobra, Borys Baranov, morreu em 2005. Valery Bespalov e Oleksiy Ananenko, ambos engenheiros-chefes de uma das seções do reator, ainda estão vivos e moram em Kiev.

Ananenko disse à BBC que, diferentemente do que é mostrado na série, não lhe foi oferecida nenhuma recompensa para encorajá-lo a participar da missão.

"Era o nosso trabalho. Se eu não tivesse feito isso, eles poderiam ter me demitido."

Os trabalhadores sabiam bem onde as válvulas estavam localizadas e, portanto, eles eram os mais adequados para essa missão. Os mergulhadores aparecem com equipamento completo na série, mas na verdade eles usaram roupa de banho sem proteção na cabeça.

De acordo com memórias dos trabalhadores, o nível da água estava abaixo dos joelhos. Em algumas áreas, eles correram para se mover mais rápido e assim reduzir a exposição excessiva à radiação.

"Eu não me lembro do que nossos dosímetros pessoais (um dispositivo que mede a radiação) mostraram", diz Ananenko, "Isso significa que não foi tão ruim assim."

Ele ri da cena em que os mergulhadores são recebidos com aplausos quando saem com segurança do reator. "Era apenas o nosso trabalho. Quem iria aplaudir isso?"

Mikhail Gorbachev em Chernobyl - Arte/UOL Arte/UOL com Getty Images - Arte/UOL Arte/UOL com Getty Images
Mikhail Gorbachev em Chernobyl
Imagem: Arte/UOL Arte/UOL com Getty Images

Estereótipos soviéticos

A série também mostra os mergulhadores bebendo vodca direto da garrafa depois de completar a missão. Na verdade, Ananenko afirma que não bebeu nada.

Para Breus, a versão estereotipada é um dos pontos baixos da série. "Há muitos estereótipos mostrados, típicos do retrato ocidental da União Soviética: muita vodca, KGB em todos os lugares...", diz.

No entanto, ele concorda com a representação da União Soviética como um regime excessivamente secreto, cujas más práticas de gestão e comunicação contribuíram ainda mais para as causas do acidente.

Quando o reator 4 explodiu, espalhando nuvens radioativas no hemisfério Norte da Terra, da Checoslováquia ao Japão, e liberando na atmosfera o equivalente a 500 bombas de Hiroshima, o Partido Comunista da União Soviética tentou controlar informações para criar sua própria versão dos fatos.

O governo soviético não queria que as más notícias se espalhassem tão rapidamente quanto a radiação. Por isso, cortou as redes de telefonia, e os engenheiros e funcionários da usina nuclear foram proibidos de compartilhar informações sobre o que aconteceu com seus amigos e familiares, explica o historiador Serhii Plokhii.

Mas nas horas seguintes à explosão pouco se sabia sobre a extensão do acidente. "Nas primeiras horas e até mesmo no dia seguinte ao acidente, não se sabia que o reator havia explodido e que havia acontecido uma enorme emissão de material nuclear na atmosfera", diria mais tarde o próprio Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética.

Segundo a ONU, o desastre afetou mais de 3,5 milhões de pessoas. Por causa da radiação, mais de 5.000 pessoas tiveram câncer de tireóide - a maioria foi tratada e curada.