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'Bandidos na TV': Wallace Souza, o apresentador acusado de matar em busca de audiência que virou série da Netflix

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Imagem: Divulgação

Vinícius Lemos - De Cuiabá para a BBC News Brasil

31/05/2019 07h49

Ex-policial que virou repórter e deputado estadual no Amazonas, Souza morreu antes do fim do processo judicial, mas filho, irmãos e policiais ligados a ele foram condenados por envolvimento com organização criminosa; família ainda nega acusações.

Do fim da década de 1990 ao início dos anos 2000, a maioria dos televisores de Manaus (AM) estavam sintonizados, na hora do almoço, no programa "Canal Livre", da TV Rio Negro. A atração, que exibia crimes cometidos na região, era comandada por Wallace Souza, que afirmava estar a serviço da população e era considerado um herói por parte dos moradores da periferia da cidade.

Com frases como "Manaus não pode virar uma terra sem dono", Wallace expressava revolta a cada crime exibido no programa. Na atração, que liderava a audiência, era comum ver corpos de pessoas assassinadas, registrados muitas vezes pela equipe de reportagem antes da chegada das autoridades policiais.

Wallace era ex-policial civil, expulso da corporação por suspeita de desvio de gasolina - acusação que negava. Fora da polícia, tornou-se repórter e criou, nos anos 1990, o próprio programa policialesco. A atração começou de modo precário, mas com o sucesso de audiência, logo atraiu patrocinadores e conseguiu melhorar sua estrutura.

Na onda do mote de herói dos pobres e do sucesso na televisão, Wallace entrou para a política. O apresentador foi eleito deputado estadual três vezes - 1998, 2002 e 2006 -, sempre com votações expressivas. Ele chegou a ser, proporcionalmente, o parlamentar mais votado do Brasil. Nas campanhas eleitorais, afirmava que seu objetivo principal era reduzir a criminalidade em Manaus.

Mas o último mandato do apresentador não foi concluído. Em 2009, ele foi cassado sob a acusação de liderar uma organização criminosa. Conforme as investigações, parte dos crimes exibidos no "Canal Livre" teriam sido encomendados pelo grupo dele, na busca por audiência e para prejudicar criminosos adversários da quadrilha que o parlamentar foi acusado de liderar.

Preso, ele negou os crimes e afirmou ter sido alvo de perseguição política.

Uma década depois de o caso vir à tona e ganhar projeção internacional, a Netflix lança, nesta sexta-feira (31), a série documental "Bandidos na TV" ('Killer Ratings' em língua inglesa), que conta a história de Wallace. A produção, dividida em sete episódios, será distribuída para 190 países e terá legendas em 27 línguas.

"Essa história tem uma premissa cativante...um apresentador que, supostamente, matou pessoas para transmitir as mortes no seu programa. Mas quando começamos a pesquisar, constatamos que isso é apenas o ponto de partida. Os acontecimentos seguintes são repletos de reviravoltas e choques", diz o diretor da série, Daniel Bogado, em entrevista à BBC News Brasil.

Assistencialismo e sensacionalismo

O programa "Canal Livre" exibia casos de polícia, fazia assistencialismo e também tinha uma vertente humorística. Diariamente, uma plateia formada por moradores de bairros periféricos de Manaus acompanhava de perto a atração.

No palco, Wallace tinha a companhia de um fantoche, o Galerito, que comentava as notícias e era responsável por trazer humor ao programa. A atração também contava com frequentes apresentações de artistas locais, que aproveitavam a boa audiência do "Canal Livre" para divulgar seus trabalhos.

Ao som de músicas melancólicas, Wallace contava as histórias de telespectadores que enfrentavam sérias dificuldades financeiras. Em muitos casos, havia pessoas que diziam que sequer tinham comida para alimentar os filhos.

Wallace Souza, o apresentador acusado de matar em busca de audiência que virou série da Netflix - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Imagem: Divulgação/Netflix

"O programa supria uma necessidade que era a falta de governo. Quando o governo estadual não funciona, as pessoas procuram ajuda desses programas com cunho social mais forte", diz o empresário Victor Hugo Magalhães, que trabalhou por 12 anos na produção do "Canal Livre".

Mas o foco do programa era a cobertura policial. Famílias desesperadas ao redor do corpo do ente querido e pessoas chocadas diante das cenas dos crimes eram situações comuns nas reportagens exibidas no programa. O drama era explorado ao máximo pelos repórteres, em coberturas sensacionalistas. Em cada caso exibido, o telespectador assistia aos discursos inflamados do apresentador, que costumava criticar o governo à época.

Wallace revezava a apresentação do programa com seus irmãos Fausto e Carlos Souza, que, mais tarde, também entraram para a política. Os três se intitulavam os "Irmãos Coragem", em alusão à telenovela brasileira homônima, com o discurso de que lutavam pela população.

Início da derrocada

A derrocada de Wallace começou em outubro de 2008. O ex-policial militar Moacir Jorge, conhecido como Moa, foi preso com armas ilegais e cocaína e, em depoimento à polícia, denunciou a existência de uma organização criminosa voltada ao tráfico de drogas chefiada por Wallace e pelo filho mais velho do apresentador e deputado, Raphael Souza.

"O 'Canal Livre', na verdade, era uma grande fachada. Eles tinham acesso a informações e chegavam primeiro ao local, justamente porque eles que cometiam esses crimes. Eles tinham essa preocupação diária com altos índices de audiência. E pra ter audiência, nada melhor do que ter o crime em primeira mão. É uma coisa surreal provocar mortes para ter audiência", diz o delegado Divanilson Cavalcanti, em trecho da série da Netflix.

Em depoimento à polícia, Moa, que disse ter trabalhado para Wallace, afirmou que os seguranças do deputado - na maioria policiais ou ex-policiais - chegaram a ser orientados pelo próprio parlamentar a "tocar o terror na cidade [Manaus], ou seja, praticar homicídios, quebrar paradas de ônibus, placas, vitrines, tudo com o intuito de desmoralizar o trabalho de inteligência da Secretaria de Segurança Pública".

Uma das provas que relacionava Wallace a Moa era uma fotografia dos dois juntos na piscina da casa do apresentador. A Polícia Civil e o Ministério Público do Amazonas criaram uma força-tarefa para investigar as acusações.

Segundo denúncia da Promotoria à Justiça, foram encontrados indícios suficientes da participação de Wallace no comando da organização criminosa. O programa "Canal Livre" seria utilizado como uma forma de prejudicar traficantes rivais por meio de reportagens. Os alvos de alguns dos homicídios exibidos no programa, identificados como cometidos a mando da organização, seriam rivais do grupo.

Além de Wallace, segundo a denúncia, a organização voltada para o tráfico de drogas também era composta pelos irmãos dele - Fausto e Carlos -, pelo filho mais velho, por alguns policiais que atuavam no extinto Departamento de Inteligência do Amazonas e por ex-policiais que faziam a segurança do deputado. Todos se tornaram réus.

O deputado negava fazer parte de uma organização criminosa e usou a tribuna da Assembleia para se defender. "Talvez venha passando a maior perseguição política já registrada neste Estado. Perseguição mais vil, irresponsável e que tem colocado a vida da minha família em risco", disse, à época.

Prisão e morte

No fim de setembro de 2009, ele teve o mandato cassado pela Assembleia Legislativa do Amazonas. Menos de uma semana depois, a Justiça decretou sua prisão sob acusação de associação ao tráfico. Ele passou quatro dias foragido e se entregou à polícia em 9 de outubro de 2009.

Wallace sofria de síndrome de Budd-Chari, uma obstrução do sistema de drenagem do fígado. Sua saúde piorou, e a Justiça permitiu que ele fizesse tratamento médico em São Paulo. O quadro da doença evoluiu rapidamente. Em 27 de julho de 2010, morreu após sofrer uma parada cardíaca.

Em razão de sua morte, foram suspensos os processos penais contra ele, todos em fase inicial à época. Mas as investigações contra os outros acusados de integrar a organização criminosa prosseguiram.

Raphael Souza, o filho mais velho, foi condenado a nove anos de prisão pela morte de um homem acusado de ligação com tráfico de drogas em Manaus, em janeiro de 2007. O corpo assassinado chegou a ser exibido no programa "Canal Livre". Ele também foi condenado por associação para o tráfico e porte ilegal de arma de uso restrito. Hoje, ele cumpre as penas em regime aberto.

Canal Livre - Netflix/Divulgação - Netflix/Divulgação
Imagem: Netflix/Divulgação

O primogênito nega todos os crimes. "Não é fácil ser acusado do que não cometemos. Hoje, sigo trabalhando e confiante que a verdade prevalecerá e provarei minha inocência. O bem mais precioso que temos é a nossa liberdade e a privação da mesma é terrível e dolorosa", diz à BBC News Brasil. "Foi devastador, porém seguimos firmes em busca de justiça. Meu pai não foi chefe de uma organização criminosa e ainda iremos provar isso na Justiça, na qual confio e sei que a verdade há de prevalecer."

Neste mês, a juíza Rosália Guimarães Sarmento, da Vara Especializada em Crimes de Uso e Tráfico de Entorpecentes de Manaus, condenou os irmãos Fausto e Carlos Souza a 15 anos de prisão pelo crime de associação para o tráfico de drogas. Policiais militares e ex-policiais também foram condenados. Todos negam os crimes. Eles permanecem em liberdade, enquanto aguardam o caso ser analisado por instâncias superiores.

Caso ainda divide opiniões

O diretor da docussérie da Netflix comenta que a produção aborda as duas versões da história de Wallace. "Na época do caso, a família sentiu que a imprensa focou bastante na força-tarefa, mas nunca deram a chance para que os parentes contassem seu lado da história. Por isso, durante a série, o público é convidado a ouvir e ver os dois lados", diz Bogado.

A família de Wallace afirma que ele é inocente e ainda acredita que conseguirá provar que ele não cometeu nenhum crime. Pessoas próximas ao ex-deputado estadual cogitam a possibilidade de a Justiça ter sido induzida ao erro.

"Esses crimes não me descem até hoje, pela minha amizade com o Wallace e pelo tanto que participei do programa", conta Victor Hugo Magalhães, que trabalhou 12 anos no programa. "Nunca vi, nunca presenciei. Seria muito difícil trabalhar por tanto tempo, ser amigo e nunca saber de nada. Eu acho que foi tudo uma farsa, uma questão política da época, porque tinham problemas com alguns poderosos. Na minha opinião, foi tudo farsa política", declara .

Para a Justiça de Manaus, porém, está clara a participação de Wallace nos crimes dos quais ele é acusado. "No meio jurídico não existem dúvidas sobre a sua culpabilidade. Mas na periferia da cidade ainda tem gente que acredita que ele é inocente", diz a juíza Mirza Telma Cunha, uma das responsáveis por conduzir o caso, anos atrás.

"A alegação desses políticos, seja no caso Wallace ou na [Operação] Lava Jato, é sempre dizer que é perseguição. Mas, para mim, isso é normal. É meio de defesa. Posso dizer que, como juiz, julguei de acordo com as provas que estavam nos processos", declara o juiz Mauro Moraes Antony, que também cuidou de parte dos processos.