Velório tem última carta de Rubem Alves; cinzas serão espalhadas em ipê
Morto no sábado, aos 80 anos, o escritor e educador Rubem Alves deve ter suas cinzas espalhadas em torno de um ipê amarelo - como era sua vontade. O corpo do intelectual mineiro foi velado neste fim de semana na Câmara Municipal de Campinas, cidade onde morava, no crematório Primaveras, em Guarulhos. Os restos mortais devem ser cremados nesta segunda-feira (21).
Durante o velório, o amigo e professor aposentado Carlos Brandão leu uma carta em que Alves se despede de familiares e amigos. "Não terei últimas palavras. O que tinha para dizer, já disse em vida", dizia a carta, segundo informações da Câmara Municipal de Campinas.
Alves deixou um adeus aos filhos e declarou amor à mulher. No final, outro amigo declamou poesia do português Antero de Quental. A pedido dos familiares, o velório ficou aberto para a visitação até a meia-noite de sábado (19) e foi reaberto na manhã de domingo (20).
O educador morreu de falência múltipla dos órgãos depois de nove dias internado no Centro Médico de Campinas. Nascido em Boa Esperança, em Minas, é autor de mais de 120 livros. Era filósofo, teólogo, psicanalista e, como educador, tornou-se uma referência para professores. Era reconhecido por defender uma escola mais livre, ligada à vida do estudante.
A morte do intelectual causou comoção entre os admiradores. "Rubem Alves era um encantador. Em seu texto Sobre a Morte e o Morrer disse que 'permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria'. Foi esta esperança que ele buscou despertar. O mundo perde um pensador brilhante", escreveu a ministra da Cultura, Marta Suplicy.
O educador Tião Rocha também lamentou. "A educação brasileira está de luto! Que sua obra e seu exemplo continuem entre nós, seus eternos aprendizes!"
Rubem era casado com Lidia Nopper Alves e deixa três filhos.
Biografia
A trajetória de Rubem Alves foi em muito forjada e influenciada pela religião. Na juventude no Rio de Janeiro, encontrou no divino um abrigo para as maldosas brincadeiras das quais era alvo de seus colegas de escola, que o viam como um caipira de Minas Gerais – é que ele nasceu no dia 15 de setembro de 1933 em Boa Esperança, quando a cidade ainda se chamava Dores da Boa Esperança. Terminado o ginásio, foi estudar teologia no Seminário Presbiteriano do Sul. Depois de formado, voltou para seu Estado natal para atuar como pastor em meio a pessoas simples e pobres.
Nesse momento, já forjava o pensamento que seria um dos pilares da Teologia da Libertação, movimento que propunha que a religião fosse interpretada e praticada sob a perspectiva dos mais pobres, questionando, por exemplo, a noção de pecado e baseando-se, principalmente, em princípios de amor e na liberdade. Acreditava que a religião deveria ser mais um meio para melhorar o mundo dos vivos do que para garantir algo às pessoas depois de mortas. Contudo, suas ideias não foram bem recebidas pela Igreja. Como o teólogo e escritor Leonardo Boff, seu colega e amigo, sofreria retaliações pelos pensamentos que expôs e pela postura que adotou.
Depois de uma temporada de estudos em Nova York, voltou ao Brasil logo após o golpe militar de 1964 e foi denunciado como subversivo pela Igreja Presbiteriana. Para escapar daqueles que o perseguiam, retornou aos Estados Unidos junto de sua família. Lá, à convite da United Presbyterian Church – EUA (a Igreja Presbiteriana estadunidense) e do presidente do seminário teológico de Princeton, escreveu sua tese de doutorado, intitulada "Towards a Theology of Liberation", na qual colocava no papel as ideias que tomariam corpo como movimento.
Retornou ao Brasil já Ph.D, quando rompeu com a Igreja Presbiteriana e ficou desempregado. Voltaria a trabalhar lecionando no ensino superior, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro, e, a partir de 1974, seria professor da Unicamp até a sua aposentadoria.
Casou-se em 1959 com Lídia Nopper e juntos tiveram três filhos, Sérgio, Marcos e Raquel. Graças à garota, começou a escrever histórias para crianças. Dedicou-se à literatura e à poesia, entendia que ambas eram alimento para o corpo e agrado para a alma. Escrevendo realizou seu frustrado sonho de ser pianista. Via nas palavras o dom que lhe faltava para as notas musicais. Inspirado por Albert Camus, Nietzsche, Jorge Luis Borges, Roland Barthes, Fernando Pessoa e Manoel de Barros, dentre muitos outros, tornou-se um dos escritores brasileiros mais prolíficos e queridos.
Sua obra conta com mais de uma centena de livros –divididos entre infantis, de crônicas, educação, religião, teologia e até biografia (“Gandhi: a Magia dos Gestos Poéticos”) –, dentre os quais merecem destaque “Ostra feliz não faz pérola”, segundo colocado na categoria “Contos e crônicas” do prêmio Jabuti de 2009, “O que é religião”, livro de introdução ao pensamento religioso, “A alegria de ensinar”, no qual discute o conhecimento e as formas de transmiti-lo de geração a geração, “A Escola que Sempre Sonhei”, também sobre educação, e os infantis “A Pipa e a Flor”, “A Menina e o Pássaro Encantado” e “A Volta do Pássaro Encantado”. Entendia que deveria abordar temas de complexidade filosófica de modo simples e compreensível, para que fossem acessíveis ao maior número de pessoas possível.
Na década de 1980, tornou-se psicanalista –dizia-se heterodoxo, pois acreditava que a beleza habitava as profundezas do inconsciente. Teve sua própria clínica até 2004 e de seus pacientes tirou inspiração para boa parte de suas crônicas. Em depoimento publicado no site de Rubem Alves, Leonardo Boff disse que o amigo “transformou-se em mestre com pontos de vista originais sobre os mais diversos assuntos. Ele sabe falar poeticamente do prosaico e prosaicamente do poético. Na minha opinião, é um dos que melhor maneja a língua portuguesa em nossa geração com uma elegância e leveza de estilo que nos causam verdadeiro fascínio”.
A formação humanista, o apreço pelas artes, o questionamento do poder e a carreira acadêmica transformaram Rubem Alves em um grande e respeitado educador – talvez o que melhor o defina na última parte de sua vida. Pensando sobre a educação, passou a questionar o modelo de ensino estabelecido, afirmava que a função do professor deveria ser a de provocar os alunos a procurarem respostas para as perguntas adotando uma posição mais próxima aos aprendizes, e não mais o adulto que simplesmente despeja conteúdos. O ambiente de aprendizado também deveria passar por mudanças profundas, aproximando-se mais das próprias casas das crianças, onde os cômodos serviriam como espécies de laboratórios íntimos que despertariam a atenção dos pequenos para as matérias a serem ensinadas. “A escola, querendo ou não, é um ambiente artificial. A vida não está acontecendo lá”, declarou em entrevista à revista Educar para Crescer.
Em seu site, escreveu “Minha estrela é a educação. Educar não é ensinar matemática, física, química, geografia, português. Essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. Dispensam a presença do educador. Educar é outra coisa. De um educador pode-se dizer o que Cecília Meireles disse de sua avó – que foi quem a educou: 'O seu corpo era um espelho pensante do universo'. O educador é um corpo cheio de mundos.... A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O mundo é maravilhoso, está cheio de coisas assombrosas. Zaratustra ria vendo borboletas e bolhas de sabão. A Adélia ria vendo tanajuras em voo e um pé de mato que dava flor amarela. Eu rio vendo conchas, teias de aranha e pipocas estourando... Quem vê bem nunca fica entediado com a vida. O educador aponta e sorri – e contempla os olhos do discípulo. Quando seus olhos sorriem, ele se sente feliz. Estão vendo a mesma coisa. Quando digo que minha paixão é a educação estou dizendo que desejo ter a alegria de ver os olhos dos meus discípulos, especialmente os olhos das crianças”. Por essa colocar em prática essa linha de pensamento, receberia o título de professor emérito da Unicamp, em 1996, o prêmio “O educador que queremos”, oferecido pela PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais), em 2003.
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