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Como o "Só estou compartilhando, não sei se é verdade" pode destroçar vidas

Sabrina - Divulgação
Sabrina Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

09/07/2020 09h08

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"Só estou compartilhando, não sei se é verdade". A ponderação, das mais toscas da atualidade, quase sempre acompanha uma grande mentira disseminada por alguém que deseja fingir isenção ou responsabilidade na internet. Há quem compre bobagens e compartilhe qualquer estupidez, sobretudo se o relincho encaixar na própria visão de mundo. Todos têm um tio ou amigo que passa o dia com o celular na mão e já perdeu a capacidade de discernir o real do fantasioso (ou mentiroso, para ser explícito).

Notícias falsas aliadas a teorias conspiratórias tão complexas quanto delirantes estão entre as grandes pragas do nosso tempo. São levadas adiante como se fossem algo sem grande importância, irrelevante - "Qual o problema de passar isso a meia dúzia de camaradas?", já ouvi de amigos. Cada compartilhamento, contudo, ajuda a engrossar o caldo que invariavelmente transborda em algum canto, transtornando vidas e alterando os rumos da história - eleições vencidas por quem apostou na distribuição profissional de fake news estão aí como prova.

É dessa podridão emanada do mundo virtual que trata "Sabrina", do norte-americano Nick Drnaso, HQ das mais elogiadas dos últimos tempos. O título acaba de sair por aqui pela Veneta em tradução de Érico Assis e carrega em seu currículo o feito de ter sido a primeira graphc novel indicada ao Man Booker Prize, principal prêmio literário de língua inglesa. A necessária discussão sobre quadrinhos, literatura e a forma como procuram validar artes mais novas se apoiando em manifestações mais antigas, já consagradas, ficará para outro momento.

No livro, a jovem Sabrina desaparece. A partir daí, uma onda crescente de burburinhos, notícias falsas e conteúdo mórbido relacionados ao misterioso sumiço impactam de forma crescente na vida de três pessoas: Sandra, a irmã da moça, Teddy, o namorado, e Calvin, oficial da força aérea e amigo que acolhe Teddy. De alguma forma, todos são sufocados pelos absurdos derramados da internet.

Há outras marcas importantes em "Sabrina": tristeza, melancolia, depressão, raiva, luto, a amizade... Tudo subordinado ao modo como as paranoias, as conspirações tresloucadas, o fetiche pelas atrocidades e a superexposição que rola no ambiente virtual acabam por encurralar pessoas já pressionadas por dramas que não nascem de mentiras ou deturpações, mas de difíceis momentos da vida caros a todos nós.

"Sabrina" merece os elogios recebidos pelo mundo. Faz, de fato, um retrato duro e necessário da contemporaneidade. Em seus quadrinhos ainda encontramos, por exemplo, os comentaristas raivosos que vomitam ódio, como se as mensagens virtuais não atingissem pessoas de verdade. Essas posturas repulsivas levam a outros desdobramentos na vida cotidiana. Também entram em cena os malucos impulsionados pela atmosfera paranoica que barbarizam em busca de projeção a qualquer custo e a imprensa que se lixa para a ética a fim de atender as expectativas do público chegado ao sensacionalismo, a massacres alheios.

Com narrativa madura, repleta de camadas, e personagens de complexidade rara de ser ver em qualquer forma de arte (destaque para Calvin), "Sabrina" é uma HQ incontornável nesses dias em que vidas são arruinadas pelo enorme compartilhamento de mentiras, deturpações e material destinado a alimentar o sadismo ou o lado mais desprezível de muita gente por aí. Serve para notarmos como cada "Só estou compartilhando, não sei se é verdade" e cada "Qual o problema de passar isso a meia dúzia de camaradas?" ajuda a formar o bola gigante que pode impactar drasticamente na vida de seres humanos. Ou até esmagá-los.

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