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Rosnava para os desafinados: Fernando, o vira-lata metido a crítico musical

Fernando, o cachorro de Resistência. - Arquivo.
Fernando, o cachorro de Resistência. Imagem: Arquivo.

Colunista do UOL

02/07/2020 09h20

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Para dormir, procurava a recepção de um hotel. Gostava de acompanhar os amigos humanos num café com leite e croissant. Costumava andar com artistas e intelectuais de Resistência, cidade do nordeste argentino, perto da fronteira com o Paraguai. Ninguém sabe como apareceu por lá no começo dos anos 1950. O que se sabe é que Fernando traçou uma história singular e se tornou um cachorro mítico, lembrado ao longo de décadas e eternizado em canções, estátuas e livros.

Há duas versões para o nome. Seria uma referência ao cantor Fernando Ortiz, seu suposto dono. Não convence. Fernando era livre. Tanto que a cidade inteira se mobilizava quando ficava doente (a vaquinha garantia os melhores veterinários) ou parava na carrocinha. Outra possibilidade, esta mais plausível, é que o nome do cão seja uma homenagem a San Fernando, venerado pelo povo da região.

Boêmio, Fernando frequentava bares e amava música. Sentava-se perto do palco ou aos pés de instrumentistas disposto a apreciar o que viesse pela frente. Entretanto, não se contentava com qualquer tranqueira. Poucos por aquelas bandas tiveram tímpanos tão aguçados quanto os dele. Em festas ou shows, rosnava e latia a cada acorde desafinado. Ia embora se o problema persistisse. Passou a ser respeitado a ponto de jornalistas esperarem por seu veredito para definir o tom da crítica de certas apresentações.

Nesta semana, fizeram sucesso Augusto (na verdade, Zeus), cachorro adotado pela família Bolsonaro e depois devolvido aos verdadeiros donos, e Alvorino, aparentemente disposto a ser acolhido por alguém. Não perderia a chance de falar também sobre Fernando. É daquelas histórias difíceis de definir o limite entre a realidade e a fabulação, sei disso. Não importa. Nesse caso, faz bem para a alma, anima a vida e arranca sorrisos sinceros tomarmos como reais prováveis exageros. Uma coisa é inegável: o vira-lata branco de olhar dócil existiu, foi muito quisto pela população de Resistência e se tornou personagem da cultura popular argentina.

Estátua de Fernando em frente à prefeitura. - Arquivo. - Arquivo.
Imagem: Arquivo.

"Era um livre. Era de todos, e não era de ninguém. Quando se cansava de fazer os gatos correrem pelas praças, saía para flanar pelas ruas com seus amigos cantores e violeiros, e com eles balançava rumo à música, tocasse onde tocasse, de festa em festa. Nos concertos, era infaltável. Crítico de fino ouvido, sacudia o rabo se gostava do que ouvia. Se não, rosnava", escreveu Eduardo Galeano em "Querido Vagabundo", um dos pequenos textos de "O Filho dos Dias" (L&PM, tradução de Eric Nepomuceno). Conheci a história do cão lendo o livro. Ao pesquisá-la, descobri que gostava de uma música em sua homenagem: "Callejero", de Alberto Cortez, regravada pelo Attaque 77 no álbum "Otras Canciones".

Há outras marcas do hermanito. Em Resistência, são três as estátuas em sua homenagem. Uma delas fica bem em frente à prefeitura, o que dá dimensão da importância do vira-lata. Outra fica sobre sua sepultura, nos arredores do museu local. Fernando morreu em 1963, depois de ser atropelado - a notícia circulou por jornais de toda a Argentina. Garantem: foi o enterro mais prestigiado da cidade; todos queriam homenagear e se despedir do camarada. Diversos comerciantes fecharam as portas em sinal de luto.

Hoje, na entrada do município, há uma placa acolhedora: "Bem-vindo a Resistência, cidade de Fernando". Na lápide, outra registro: "A Fernando, um cachorrinho branco que, perambulando pelas ruas da cidade, despertou em infinitos corações um carinhoso sentimento".

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