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Como o "Woodstock brasileiro" mudou a história dos festivais em plena ditadura

João Gilberto se apresenta no Festival de Águas Claras em 1983 - Divulgação
João Gilberto se apresenta no Festival de Águas Claras em 1983 Imagem: Divulgação

Leonardo Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

23/01/2019 04h00

Em meados dos anos de 1970 os ecos de Woodstock ainda reverberavam entre a juventude brasileira. Inspirados no rock e na contracultura, festivais como o de Guarapari, no Espírito Santo, em 1971, e em Cambé, no Paraná, em 1973, além do primeiro Hollywood Rock em 1975, falharam em reproduzir o clima bucólico e de desbunde do evento americano. Mas um desses eventos pioneiros, realizado em uma fazenda de Iacanga, interior de São Paulo, chegou muito perto disso, guardadas as devidas proporções: o Festival de Águas Claras, realizado em 1975.

A história do "Woodstock brasileiro", que teve mais três edições nos anos 1980 (1981, 1983 e 1984), é agora contada no documentário "O Barato de Iacanga", dirigido por Thiago Mattar, que estreia mundialmente na próxima segunda (28) no festival italiano Seeyousound International Music Film. Ouvindo músicos, fãs e produtores, o filme desvela causos, resgata personagens e, principalmente, ressalta a importância de um evento que lançou bases para os grandes festivais a céu aberto no Brasil, servindo de inspiração para o Rock in Rio.

Uma das histórias famosas mostradas no festival é a do mutante Arnaldo Baptista, que assinou para tocar com o grupo na primeira edição, mas tomou ácido, ficou louco e deu um perdido nos produtores. Outra, que será mostrada no filme, é o do difícil processo de viabilização dos shows. Ciente da ascensão hippie, o governo militar só liberou os festival após o idealizador do festival, Antônio Checchin Júnior, o Leivinha, assinar um termo de responsabilidade em que se comprometia a não atentar contra a "moral e os bons costumes" --algo, obviamente, impossível de ser cumprido.

Destaque ainda para os depoimentos de grandes nomes da MPB, como Alceu Valença, Jards Macalé e Hermeto Pascoal, que se apresentaram nos anos 1980, e para a história da "geração perdida" do rock brasileiro setentista, de bandas como Som Nosso de Cada Dia, Moto Perpétuo, O Terço e Terreno Baldio, entre tantas outras que marcaram época e jamais frequentaram as paradas. O filme é um projeto pessoal e antigo de Mattar, fecundado quando estudava jornalismo em São Paulo, e que só há três anos pôde ser concluído por ele ao se unir a uma produtora.

"Meu pai sempre me contou que tinha ido ao 'Woodstock brasileiro', e isso sempre despertou minha curiosidade. Mas como assim isso aconteceu?", conta ao UOL o diretor. "Comecei a pesquisar e, como eu já conhecia a cidade, tive a ideia de fazer o filme assim que entrei na faculdade. Fui em Iacanga conversar com a pessoas, mas era um material muito amador. Uma pequena parte dele foi aproveitado no filme. Eu nem sabia o que estava fazendo".

O diretor Thiago Mattar - Reprodução - Reprodução
O diretor Thiago Mattar
Imagem: Reprodução

Antes de vender o projeto à produtora bigBonsai, a mesma que fez o documentário sobre o músico Dominguinhos, Mattar chegou a acampar na porta do apartamento de João Gilberto no Rio --ele aparece em imagens da edição de 1983--, para conseguir autorização no uso da música e imagem do artista. Apenas recentemente, por meio de advogados, a produtora conseguiu o licenciamento por meio da filha Bebel Gilberto, que em 2017 assumiu na Justiça o controle da obra do pai.

"Fui atrás de apresentar o projeto para algumas produtoras e a bigBonsai achou tão incrível minha história que resolveu assumir o filme", diz Mattar que gastou R$ 500 mil, a maioria para pagar direitos autorais e conseguir imagens de arquivo. Os recursos vieram de um edital do Fundo Setorial do Audiovisual. O filme está inscrito em festivais nacionais de música, como o in-Edit. No segundo semestre, ainda será exibido na TV pelo Canal Curta!.

O palco do festival, construído com madeira que seria usada em currais  - Divulgação - Divulgação
O palco do festival, construído com madeira que seria usada em currais
Imagem: Divulgação

O início do festival

O Festival de Águas Claras nasceu do desejo de Leivinha, na época com 22 anos, de encenar ao ar livre uma peça teatral que havia escrito. A ideia foi crescendo aos poucos, na base do boca a boca, e se transformou em um evento de rock, nos moldes dos festivais internacionais. O local escolhido foi a fazenda da família no interior de São Paulo.

"Fui pra fazenda e vi uma área bonita. Imaginei aquilo cheio de gente. Comecei a falar para as pessoas que eu queria fazer uma festa. Nessa brincadeira, recebi ligações de várias pessoas e bandas. Eu explicava que era uma coisa amadora, sem patrocínio, mas eles foram pirando e topando", conta ao UOL Leivinha. "O Leivinha tinha um delírio utópico de juntar todo mundo. Naquele momento, o festival acabou sendo um ato político. Um ato de liberdade para um mundo novo que precisava surgir", conta o filósofo Claudio Prado, responsável pelo palco na primeira edição do Águas Claras.

Público se reúne na primeira edição do Festival de Águas Claras - Reprodução - Reprodução
Público se reúne na primeira edição do Festival de Águas Claras
Imagem: Reprodução

Ar de quermesse

A estrutura do evento, que ficou conhecido como "maior festival de música brasileira a céu aberto", era pra lá de acanhada se comparada à dos dias atuais. O palco, de 10m de altura por 20m de largura, era de madeira, montado com a ajuda do pai de Leivinha utilizando material dos currais. Segundo jornais da época, havia 50 sanitários, uma barra de assistência médica, duas ambulâncias e várias barraquinhas de comida de mercadinhos da região.

Banho? Só no lago ou em bicas. Quando a comida acabava, a solução era caçar laranjas e mandioca na fazenda. Entre 10 e 30 mil pessoas compareceram à primeira edição, o dobro do esperado. Os ingressos para os três dias custavam 30 cruzeiros, equivalente a cerca de R$ 76. O clima era de calor intenso, pouca roupa e desbunde. Com o tempo, o festival ainda passou a trazer atrações circenses como trapezistas e globo da morte, ressaltando a identidade das festas interioranas do país. "Falo que era uma grande quermesse", diz Leivinha.

"O pessoal trazia ácido e outras coisas alucinógenas, mas para uso pessoal. Não houve apreensão nem tráfico de nada. O chá de cogumelo era in natura. O festival aconteceu num pasto e, à noite, o pessoal colhia os cogumelos junto dos dejetos das vacas. E era um barato tranquilo tomar. Só um pouco forte para estômago, mas interessante", lembra o músico Zé Brasil, do grupo Apokalypsis, que tocou durante 3h até o sol raiar na primeira edição do Águas Claras.

O cantor João Gilberto se apresenta no Festival de Águas Claras em 1983 - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal

João Gilberto

Já com estrutura profissional, o festival de Águas Claras retornou nos anos 1980 sob um grande patrocinador, o Unibanco, e uma emissora de televisão oficial, a TV Bandeirantes, que transmitiu as apresentações. A fazenda passou a receber até cem mil pessoas e uma escalação mais ligada à MPB. Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Fagner, Jards Macalé, Erasmo Carlos e Raul Seixas, entre outros, encararam a multidão que ainda mantinha vivo o espírito hippie, agora tomado pelo odor da maconha.

O sucesso foi tanto que os organizadores se incumbiram de uma tarefa grandiosa: convencer João Gilberto a dar seu primeiro e único show ao ar livre. E, contra todas as possibilidades, eles conseguiram. "A produção encontrou um produtor, o Beto Ruschel, que conhecia o João, e o cara ficou semanas atrás dele tentando convencer. João Gilberto sempre teve horror a festival. Mas, de repente, depois de um tempo ele disse 'sim'", conta Mattar.

Durante o festival, João Gilberto discutiu feio com Jards Macalé, que sofreu de diarreia após tomar uma cerveja suspeita, e ainda passou por um bar da região em que, reza a lenda, um homem conduzia um urubu com uma coleira. "Ele entrou no palco às 6h da manhã, com pessoal rolando na lama, de cobertor, saindo das barracas com fumaça subindo, com olho vermelho e aquele olhar sem fim. É um negócio de sonho o material desse show. A Band o preservou intacto. É uma das maiores pepitas de ouro da história da música brasileira."

Imagens do Festival de Águas Claras, que aconteceu entre 1975 e 1984 - Divulgação - Divulgação
Imagens do Festival de Águas Claras, que aconteceu entre 1975 e 1984
Imagem: Divulgação

Legado

Após a primeira edição do festival, o ministro da Justiça da época, Armando Falcão, emitiu um alerta a todos os governadores do país alertando sobre o "perigo" de eventos ao ar livre, que só voltariam a acontecer, nos mesmos moldes, durante a década de 1980. Depois de ter sua última edição em 1984, realizada no Carnaval e marcada pela chuva e problemas logísticos, o festival legou ao país uma mensagem de liberdade e luta por direitos individuais, entende Leivinha. "Ele representava uma época, uma tentativa de experimentar uma pretensa liberdade com a reunião de pessoas. Quando saiu o [movimento] Diretas Já, essa abertura já estava mais consolidada. O festival acabou perdendo sentido."

Para Mattar, Águas Claras moldou o que seriam os festivais brasileiros e transformou com ecletismo mais de uma geração de fãs de música. "Existe até um papo de bastidor de que o [criador do Rock in Rio, Roberto] Medina e a [agência] Artplan viram o erro do último festival, que também teve problemas de bilheteria e invasão, e o usaram como exemplo. Naquela época, não havia expertise para produção de festivais. Eles aprenderam e se uniram a uma estrutura maior, com outra TV, a Globo. Águas Claras foi o laboratório do Rock in Rio", conclui.