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Daniela Arbex sobre médium Isabel S. de Campos: Coragem de praticar o bem

Daniela Arbex. - Divulgação
Daniela Arbex. Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

08/09/2020 09h01

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"Dona Isabel é uma brasileira singular que criou uma escola aos 14 anos para retirar os filhos de lavradores do sertão mineiro do analfabetismo. Tirou mais de 500 crianças das ruas sem nenhuma ajuda do poder público e ainda mobilizou milhares de pessoas em torno de um gigantesco trabalho solidário em uma época na qual o Brasil desconhecia o voluntariado".

A resposta de Daniela Arbex para uma das perguntas abaixo faz um apanhado representativo dos feitos de Isabel Salomão de Campos, um dos grandes nomes do espiritismo no país e protagonista de "Os Dois Mundos de Isabel", livro que Daniela acaba de publicar pela Intrínseca. "A história dela nos ensina a ter coragem frente a um mundo de ódio que transformou o semelhante em inimigo", indica a autora.

Jornalista consagrada por trabalhos como "Holocausto Brasileiro", um dos livros mais impactantes dos anos 2010, e o também duríssimo "Todo Dia a Mesma Noite: A História Não Contada da Boate Kiss", agora Daniela migra do livro-reportagem para entregar aos leitores uma obra biográfica. "Mergulhar em uma história de coragem e bondade foi um alívio, permitiu a cicatrização de sentimentos que eu nunca tinha experimentado", diz na entrevista ao comparar o novo trabalho com os anteriores.

Isabel nasceu em 1924 no interior de Minas Gerais e precisou lutar para que tivesse acesso à educação. Enfrentou o machismo e preconceitos religiosos quando começou a compreender, aceitar e a praticar a mediunidade. Fundou em 1974 o centro espírita Casa do Caminho, que segue acolhendo pessoas em busca de ajuda. Diversas foram as adversidades superadas para que pudesse "praticar o bem", conforme aponta Daniela. Esta, ao narrar uma vida que já soma quase 100 anos, ainda repassa momentos decisivos da história do Brasil ao longo desse tempo, como a participação na Segunda Guerra Mundial e a ditadura militar.

O que a história de Isabel tem a dizer, mostrar ou ensinar para este Brasil de hoje, cheio de ataques à educação, a espaços sagrados de determinadas religiões, de pessoas que vivem falando em matar os outros...?

A história de Isabel é inspiradora. Nela, conhecemos uma mulher à frente do seu tempo, que passou boa parte dos seus quase cem anos de vida fazendo o bem ao outro, de maneira desinteressada e permanente. Estamos falando de uma pioneira cuja vida é marcada pela busca de sua família por uma nova pátria, pela defesa do direito ao acesso à educação, pelo empoderamento feminino em uma época na qual, para as mulheres, era reservado apenas o dever de não existir. De alguém que lutou contra a intolerância religiosa, já que só em 1940 o censo brasileiro reconheceu o espiritismo como opção de resposta, em uma época em que 99% da população brasileira se declarava católica. A história dela nos ensina a ter coragem frente a um mundo de ódio que transformou o semelhante em inimigo.

Isabel Salomão de Campos - Fernando Priamo - Fernando Priamo
Isabel Salomão de Campos
Imagem: Fernando Priamo

O livro traz histórias que falam de premonições, de espíritos, de pessoas que conversam com almas desencarnadas ao telefone... É preciso ter certa fé para acreditar em tudo o que está presente no volume, me parece. Como jornalista que busca comprovar os fatos, esses aspectos metafísicos da história de Isabel lhe preocuparam ou incomodaram em algum momento? Não há certa contradição entre passagens narradas e a busca pelo real verificado, checado e comprovado?

Para escrever a história de Dona Isabel, recorri muito mais à ética jornalística do que à fé. Até porque o livro não tem a pretensão de convencer ninguém sobre as crenças da protagonista. Independente da religião, Dona Isabel é uma brasileira singular que criou uma escola aos 14 anos para retirar os filhos de lavradores do sertão mineiro do analfabetismo. Tirou mais de 500 crianças das ruas sem nenhuma ajuda do poder público e ainda mobilizou milhares de pessoas em torno de um gigantesco trabalho solidário em uma época na qual o Brasil desconhecia o voluntariado. Neste momento, um dos trabalhos que ela criou, o Médicos do Bem, que reúne profissionais de todas as religiões, inclusive os sem religião, foi eleito um dos 11 melhores projetos do país pelo Prêmio Euro Inovação 2020. Um trabalho que consiste apenas em levar atendimento médico para as áreas em situação de vulnerabilidade.

Para além da narrativa individual da protagonista, o livro revela outros cem personagens que foram entrevistados em todo o país. Há ainda a pesquisa sobre a história do Brasil. No livro, o leitor começa na Era Vargas, passa pelo Estado Novo, pela Segunda Guerra Mundial, pela ditadura, a Constituição de 1988 e chega até os dias atuais. Para isso, foi necessária muita apuração jornalística.

No mais, penso que o jornalismo deve estar aberto a tudo. Seria intolerância religiosa da minha parte desistir de contar uma história por causa da crença da personagem. Se a religião fosse impedimento para narrar trajetórias de maneira jornalística, haveria uma lacuna histórica. O livro não faz uma defesa da visão de mundo de sua protagonista. Apenas apresenta ao leitor a forma como ela enxerga esses dois mundos.

Em certo momento, você destaca a importância dela, como mulher, fazer tudo o que fez num espiritismo até então dominado por homens. Quais tabus a Isabel ajudou a quebrar ou quais transformações ajudou a fazer?

Muitos. Primeiro, ela conseguiu estudar em uma época na qual as mulheres estavam destinadas a servir ao lar. Depois, ainda na adolescência, defendeu o direito à educação em um Brasil rural, no qual o saber não era valorizado, e sim a enxada. Mais tarde, rompeu com as tradições de uma sociedade patriarcal que relegava a mulher à invisibilidade. Deu voz a si mesma e a todas as outras mulheres com o seu exemplo.

Superou a intolerância religiosa ao declarar publicamente sua crença em uma religião que, no início do século 20, era não só malvista, como incompreendida. Trabalhou fora, quando o usual era limitar-se aos afazeres domésticos. Acolheu todas as diferenças, amou sem limites cada pessoa que se aproximou dela. Teve a coragem de praticar o bem, de desafiar a ordem vigente para levar consolo a quem a procurasse, ajudando milhares de pessoas. Conseguiu ter acesso liberado aos CTIs de todos os hospitais de Juiz de Fora, ambientes dominados pelo saber médico e pelo ceticismo. Ela nunca teve medo de ser quem é.

No livro há um breve encontro entre Isabel e João de Deus. Em nenhum momento da vida ela foi mais próxima do homem que construiu um império e hoje está condenado por uma série de crimes? Qual é a visão dela sobre tudo o que ocorreu com ele nos últimos anos?

Foi o único encontro deles. João Teixeira de Faria nunca professou o espiritismo até porque cobrava pelo que fazia. Ao criar uma seita para ele e um comércio em torno dela, não há nada que o aproximasse do universo de Dona Isabel.

Apesar da alegação de que ele exercia dons mediúnicos, a mediunidade não foi inventada pelo espiritismo. Todos os grandes pensadores da antiguidade grega já falavam na individualidade dos espíritos e acreditavam que eles podiam intervir no mundo físico. As pitonisas gregas eram consideradas as médiuns daquele período. O profetismo é reconhecido por pesquisadores como a mediunidade exercida em épocas remotas. Nas paredes das pirâmides, por exemplo, há registros de hieróglifos que remetem à evocação dos mortos e às reuniões mediúnicas já naquela época.

A questão principal aqui não é a mediunidade, mas o uso que se faz dela. E isso depende do caráter de cada um.

mundos de isabel - Reprodução - Reprodução
Os Dois Mundos de Isabel
Imagem: Reprodução

Seus outros livros são reportagens de fôlego; neste, você constrói uma narrativa biográfica. No posfácio, indica proximidade com a personagem, sua conhecida desde a adolescência. Como foi trabalhar numa história tão diferente das outras histórias que você contou em livro?

Apesar da mudança de gênero literário, o estilo da minha escrita não mudou, como o próprio Caco Barcellos destacou no prefácio. Se a minha proximidade com a protagonista foi um facilitador, por outro lado me impôs enormes desafios. Um deles era a necessidade de humanizar a personagem e, ao mesmo tempo, ficar emocionalmente distante dela. Como explico no posfácio, inverti a ordem das coisas. Nos livros anteriores, eu me aproximei das histórias. Neste, precisei me afastar.

Há algum alívio em mergulhar numa história com um teor trágico muito menor do que temos no revoltante "Holocausto Brasileiro" ou no agoniante "Todo Dia a Mesma Noite"?

Sem dúvida. Quando terminei de escrever o "Todo Dia a Mesma Noite", estava despedaçada emocionalmente. Tinha engordado dez quilos e perdido a metade do meu cabelo. Fiquei dois anos entre o Rio Grande do Sul e Minas, onde moro. Levei outros dois anos para voltar a ser eu mesma. Mergulhar em uma história de coragem e bondade foi um alívio, sim, permitiu a cicatrização de sentimentos que eu nunca tinha experimentado.

Particularmente, quais são os aspectos ou passagens que você mais gosta na história da Isabel?

Entre as passagens que mais me despertaram curiosidade está a do bandido Mineirinho, cuja morte teve repercussão nacional, sendo alvo da crônica de Clarice Lispector. Quando Dona Isabel foi procurada por uma das maiores autoridades educacionais da época, o reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora, para ajudar alguém que se apresentava em nome do morto, impressiona, porque mostra como ela, ainda muito jovem, já era respeitada. Também o capítulo do suicídio assistido do cientista australiano David Goodall mexeu comigo. Enquanto a Europa toda fazia vaquinha para ajudá-lo a se matar, Dona Isabel, aos 94 anos e morando no interior de Minas, fez tudo ao seu alcance para ajudá-lo a viver. O caso dele ficou mundialmente conhecido e o mais interessante é que conseguimos entrevistar as pessoas que estiveram com Goodall na Suíça, inclusive a médica responsável pelo procedimento ocorrido em 2018. Conseguimos um furo jornalístico: entrevistar a última pessoa que esteve com ele antes e durante a aplicação da injeção letal que resultou na sua morte. Foi uma entrevista exclusiva.

A Isabel ainda está viva e foi sua principal fonte para escrever o livro, pelo que lemos no posfácio. Quanto do que temos na obra vem das memórias da protagonista e quanto há de informações de outras fontes?

Nenhuma biografia ou livro-reportagem é escrito com base em uma única fonte, mesmo que seja o biografado. A premissa jornalística exige que se ouça o maior número de fontes possível. Quem ler o livro vai perceber que Isabel é a protagonista do livro, obviamente, mas a obra não se restringe às memórias dela. Elas são o ponto de partida para todo o trabalho que veio depois. Esta biografia, como todos os meus livros anteriores, me fez gastar muita sola de sapato. Entrevistei mais de 150 pessoas, cem delas estão contempladas no livro. Mergulhei na história do país e precisei investigar para conseguir localizar muitos dos que foram citados por Dona Isabel. O livro nos leva para a Itália, na Segunda Guerra Mundial, para os primeiros estudos do espiritismo no Brasil organizados por um jornalista, o José Olímpio Teles, nos leva aos porões da ditadura, ao governo Vargas e ainda nos apresenta pessoas reais com seus dilemas existenciais pelos quais todos passamos.

Como nos livros anteriores, em Os dois mundos de Isabel precisei, além de apuração de qualidade, exercitar a empatia. Construir confiança para que os personagens tivessem a coragem de expor seus dramas pessoais. Embora a temática de "Os Dois Mundos de Isabel" seja diferente das outras que abordei, o livro dialoga com todos os outros que escrevi até aqui, porque ajuda a construir a memória coletiva do Brasil a partir da história de vida de uma brasileira centenária. O resultado é uma obra que emociona, porque resgata a nossa humanidade ao falar sobre alguém capaz de se colocar no lugar do outro, ou seja, uma mulher com um incrível senso de responsabilidade com o coletivo. Quer algo mais revolucionário do que isso?

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