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Martin Luther King, a luta pacífica e o problema com os brancos 'moderados'

Martin Luther King - Getty
Martin Luther King Imagem: Getty

Colunista do UOL

27/08/2020 09h45

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Em 1963, um atentado a bomba feito pela Ku Klux Klan contra uma igreja batista em Birmigham, no Alabama, deixou quatro mortos. Os protestos decorrentes se transformaram em importantes episódios dos movimentos contra a segregação racial que se espalharam pelos Estados Unidos e culminaram numa revolução. Este é o termo que Martin Luther King, um das mais famosas lideranças dessas manifestações, usa para se referir àquele período de luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

Os protestos contra o sistema fizeram com que King passasse um período atrás das grades. O tempo trancafiado, as convicções pelas causas e estratégias que defendia e uma análise da história do racismo nos Estados Unidos estão no cerne de "Por Que Não Podemos Esperar", livro do líder publicado em 1964, mesmo ano em que recebeu o Nobel da Paz. O título acaba de ganhar uma edição no Brasil pela Faro Editorial, com a tradução é de Sarah Pereira.

Os passos lentos e às vezes inexistentes para a integração dos negros à sociedade após o fim da escravidão, o desapontamento com os partidos políticos e a discriminação institucionalizada são alguns dos elementos indicados por King como combustíveis para os protestos que explodiram na década de 1960. O cenário externo, com dezenas de países africanos conseguindo a independência e negros consagrados como lideranças internacionais, também influenciaram no cenário norte-americano, aponta o líder.

Ao longo da obra, problemas familiares aos nossos dias aparecem: a truculência e arbitrariedade das autoridades, as discussões sobre quais grupos são negativamente impactados pelas transformações no mercado de trabalho, as hipocrisias e contradições inerentes aos Estados Unidos (destaque para a balela de "terra da liberdade")... Nesse sentido, aliás, King privado de sua liberdade resulta no ponto alto do volume: a carta destinada a companheiros religiosos escrita em abril de 1963 a partir da prisão.

Pastor protestante influenciado por nomes como Gandhi e Henry Thoreau, Luther King foi um defensor radical da não violência e da desobediência civil como meios para alcançar seus objetivos. A tensão entre as forças, por outro lado, era vista com bons olhos. "Devo confessar que não tenho medo da palavra 'tensão'. Eu sinceramente me opus à tensão violenta, mas há um tipo de tensão construtiva e não violenta que é necessária para o crescimento", registra o líder num dos momentos mais interessantes do livro. A seguir, outras boas passagens de "Por Que Não Podemos Esperar":

CARTA AOS CLÉRIGOS: ESTRUTURA DE PODER

"Os senhores deploram as manifestações que ocorrem em Birmingham. Mas a sua declaração, lamento dizer, falha em expressar preocupação semelhante pelas condições que provocaram as manifestações. Tenho certeza de que nenhum dos senhores gostaria de se contentar com o tipo superficial de análise social que lida apenas com os efeitos e não com as causas subjacentes. É lamentável que estejam ocorrendo manifestações em Birmingham, mas é ainda mais lamentável que a estrutura de poder branco da cidade tenha deixado a comunidade negra sem alternativas"

Por Que Não Podemos Esperar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

CARTA AOS CLÉRIGOS: O PROBLEMA DO BRANCO MODERADO

"Devo lhes fazer duas confissões honestas, meus irmãos cristãos e judeus. Primeiro, devo confessar que nos últimos anos tenho ficado bastante desapontado com os brancos moderados. Quase cheguei à lamentável conclusão de que o grande obstáculo dos negros em seu passo rumo à liberdade não é o Conselho dos Cidadãos Brancos ou a Ku Klux Klan, mas sim o branco moderado, que é mais devoto à 'ordem' do que à justiça; que prefere a paz negativa, que é a ausência de tensão, à paz positiva, que é a presença de justiça; que diz constantemente 'Concordo com você no objetivo que busca, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta'; que paternalisticamente acredita que pode definir o calendário para a liberdade de outro homem; que vive por um conceito de tempo mítico e que constantemente aconselha o negro a esperar por um 'tempo mais conveniente'. O entendimento superficial das pessoas de boa vontade é mais frustrante do que o absoluto equívoco das pessoas de má vontade. A aceitação morna é muito mais desconcertante do que a rejeição total".

PACIÊNCIA?

"Em primeiro lugar, é importante entender que a Revolução não é indicativa de uma súbita perda de paciência dentro do negro. Ele nunca havia sido realmente paciente, no sentido puro da palavra. A postura de espera silenciosa lhe foi imposta psicologicamente porque estava fisicamente algemado".

OPORTUNISTAS, APROVEITADORES, EXPLORADORES E ESCAPISTAS

"Os negros são humanos, não super-humanos. Como todas as pessoas, eles têm personalidades diferentes, interesses financeiros diversos e aspirações variadas. Há negros que nunca irão lutar pela liberdade. Há negros que buscarão lucrar sozinhos com a luta. Há até alguns negros que irão cooperar com seus opressores. Esses fatos não devem afligir ninguém. Cada minoria e cada povo têm sua parcela de oportunistas, aproveitadores, exploradores e escapistas. O martelo que golpeia discriminação, pobreza e segregação deve deformar e corromper alguns. Ninguém pode fingir que, porque um povo é oprimido, cada indivíduo é virtuoso e digno. A questão real é se as características dominantes na grande massa são decência, honra e coragem".

TERRA DA LIBERDADE?

"A justificação para arriscar a aniquilação da raça humana sempre foi expressa nos termos de que os Estados Unidos tinham a boa vontade de fazer o necessário para preservar a liberdade. Para o negro, essa prontidão para medidas heroicas em defesa da liberdade desaparecia ou tornava-se tragicamente fraca quando a ameaça estava dentro de nossas fronteiras e se referia à liberdade dos negros. Enquanto o negro não é egoísta para levantar-se preocupado apenas com seu próprio dilema, ignorando o fluxo e refluxo dos eventos ao redor do mundo, há certa ironia amarga na imagem de seu país defendendo a liberdade em terras estrangeiras ao passo que falha em assegurar a liberdade para vinte milhões de seus próprios habitantes

A NÃO VIOLÊNCIA

"A não violência é uma arma poderosa e justa. É uma arma única na história, que corta sem ferir e enobrece o homem que a empunha. É uma espada que cura. É tanto uma resposta prática quanto moral ao grito de justiça do negro. A ação direta não violenta provou que poderia ganhar vitórias sem perder guerras, e assim tornou-se tática triunfante da Revolução Negra de 1963".

REVOLTA X REVOLUÇÃO

"Um movimento social que só move as pessoas é apenas uma revolta. Um movimento que muda tanto as pessoas quanto as instituições é uma revolução. O verão de 1963 foi uma revolução porque mudou a face da América. A liberdade era contagiosa. Sua febre queimou em quase mil cidades, e no momento em que havia passado o seu pico, milhares de balcões de almoço, hotéis, parques e outros espaços de acomodações públicas tinham se tornado integrados".

VIOLÊNCIA TÃO REPUGNANTE COMO CANIBALISMO

"Cedo ou tarde, todos os povos do mundo, sem considerar os sistemas políticos sob os quais eles vivem, terão que descobrir uma maneira de viver juntos em paz. O homem nasceu na barbárie, quando matar seu próximo era uma condição normal de existência. Ele ficou dotado de consciência. E agora chegou ao dia em que a violência contra outro ser humano deve se tornar tão repugnante quanto comer a carne do outro. A não violência, a resposta para a necessidade dos negros, pode se tornar a resposta para a necessidade mais desesperada de toda a humanidade".

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