Sucesso intensivo

Em tempos de pandemia, séries médicas reforçam sua relevância e mostram por que ainda repercutem tanto

Guilherme Machado Do UOL, em São Paulo, Pasadena e Vancouver* Arte/Marcel Lisboa

Chega ao fim a 16ª temporada de "Grey's Anatomy". O último capítulo vai ao ar nesta quinta nos Estados Unidos (no Brasil, a série é exibida pelo canal Sony, mas com semanas de atraso), depois que a produção teve quatro episódios cortados e as gravações suspensas por causa da pandemia do novo coronavírus. E falar em um seriado médico em meio a uma crise mundial de saúde parece ser mais relevante do que nunca. Uma situação sem muitos precedentes.

As entrevistas desta reportagem foram realizadas antes de o novo coronavírus se espalhar pelo mundo. Hoje, as palavras ganham um novo significado ao responder a pergunta:

Por que seriados médicos, independentemente da época, são sempre tão bem sucedidos?

A fórmula é antiga e usada desde clássicos como "ER", que estreou em 1994, até séries mais recentes, como "The Good Doctor", que chegou em 2017, e mesmo no Brasil, com "Sob Pressão". Mas existe algo neste universo que, por mais repetido que seja, sempre faz o público a voltar.

Em tempos de isolamento social, em que médicos reais estão se doando na linha de frente, as séries médicas parecem ainda mais inspiradoras.

Arte/Marcel Lisboa
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Entre traumas e amores

Em 1994, George Clooney já encantava espectadores com o doutor Doug Ross, um pediatra complicado, cheio de dilemas e problemas pessoais. O personagem, apesar do jeito por vezes truculento, gerou empatia e identificação com o público. Anos depois de "ER", que durou até 2009, sempre mantendo o sucesso, seriados com hospitais como seus cenários só proliferaram.

"Grey's Anatomy", criação de Shonda Rhimes, talvez seja o maior exemplo: a história se tornou um fenômeno mundial, ganhou diversas temporadas e sua protagonista, a doutora Meredith Grey (Ellen Pompeo), se tornou um ícone da teledramaturgia norte-americana.

A paixão e dedicação de Meredith por sua profissão é um dos alicerces da série, e na visão do ator Jason Winston George, que vive o doutor Benjamin Warren, personagem que começou em "Grey's" e está agora em seu spin-off, "Station 19", essa interpretação heroica explica parte do sucesso de séries médicas, uma vez que o público pode acompanhar um pouco da rotina árdua dos médicos.

É heroico e algo pelo qual as pessoas aspiram. Reafirma a vida. Você assiste essas pessoas fazendo tudo que podem, quebrando regras e arriscando suas carreiras para tentar salvar uma vida. Isso é inspirador.

Isso explica a motivação das pessoas que aplaudem, de suas varandas, profissionais da medicina que lutam diariamente contra o coronavírus. Para Kim Raver, que interpreta a médica Teddy Altman, existe também um elemento de identificação direto com o ambiente hospitalar:

É vida e morte! De certa forma, essa é a grande questão existencial. Grey's é muito boa em adicionar comédia a isso. No passado, um hospital não era um lugar engraçado

O humor é um dos lados que fazem lembrar que "Grey's" e outros dramas médicos, apesar de tratarem de temas espinhosos do mundo real, são ainda um trabalho de ficção, com espaço para histórias que lidam também com romances e intrigas, como lembra, de forma engraçada, o ator Greg Germann, que vive o doutor Tom Koracick.

Tem um problema [médico] e alguém precisa resolver, ou se tem sucesso ou fracassa. E, enquanto isso, acontece talvez de aquela pessoa estar transando. É uma boa fórmula.

'Grey's' previu o coronavírus?

Um episódio da 12ª temporada levou um dos médicos a questionar se April (Sarah Drew) estaria com Mers, provocada por um tipo de coronavírus. No original em inglês, o médico fala o termo "Mers", mas no Brasil a cena foi redublada para fazer referência ao coronavírus.

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Linguagem universal

"Grey's Anatomy" está atualmente sob o comando da autora Krista Vernoff que assumiu a função de showrunner no lugar de Shonda Rhimes. Para ela, o tema da saúde é algo que conversa com todas as pessoas, independentemente de classe social ou país.

A saúde é o grande nivelador. Dizem que você não tem nada se não tem sua saúde. Não importa se você é rico ou pobre. No fim do dia, se você está morrendo, se precisam abrir seu corpo em uma emergência, todos são iguais, todos são os mesmos. Acho que é isso que faz as séries terem identificação: todos vão ter ou já tiveram alguém que foi parar num hospital.

A escritora relata que já virou uma hipocondríaca de tantos artigos médicos que leu e de tantos casos que descobriu sobre as mais variadas condições, mas ela também ressalta o lado ficcional da série como um de seus apelos, especialmente a forma como os personagens conseguem cativar o público em seus dramas pessoais.

Acho que o apelo internacional está nos personagens e nos romances. O amor é língua internacional. Corações partidos e romance são mundiais, e 'Grey's' e 'Station 19' encontram uma forma de juntar essa linguagem do coração com a do hospital de uma forma que cria identificação

Para Krista, o lado romântico do seriado é particularmente potente.

É terapia e fantasia. Desejamos desesperadamente que as pessoas que amamos falem todos os sentimentos para nós em um monólogo. Na vida real, as pessoas fazem jogos. Em 'Grey's' e 'Station 19' nós temos esses momentos de puro alívio, em que particularmente homens te falam o que estão sentindo e pensando.

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Dias de empatia

Outro seriado médico que dominou o mundo nos últimos tempos foi "The Good Doctor" (exibido no Brasil pelo Sony Channel, GNT e Globoplay), criado por David Shore, a mesma mente por trás de outra série (muitíssimo bem sucedida) passada num hospital: "House". A história do doutor Shaun Murphy (Freddie Highmore), um médico brilhante que precisa lutar contra o preconceito por ser autista, virou uma febre em vários países.

Todos podemos pegar uma doença. Então quando você assiste a esses programas, você pensa: 'Acabei de aprender sobre uma doença nova'. O que te assusta, mas você ganha conhecimento, é educativo. É o que nos une.

Christina Chang, que vive a doutora Audrey Lim em 'The Good Doctor'

Quando as pessoas estão em níveis socioeconômicos mais altos, elas são capazes de acessar cuidados médicos de forma mais fácil. Mas diante de portas do hospital, para uma pessoa comum, é como comprar um carro: você não tem nenhuma informação. As pessoas ficam muito vulneráveis. É fascinante porque todos nós já estivemos lá, e a morte vai tocar a todos nós

Nicholas Gonzalez, intérprete do médico Neil Melendez

Mas, para além de aspectos já presentes em outras obras similares, os atores defendem que "The Good Doctor" possui ainda um outro fator, que também parece potencializado no atual momento mundial: a empatia.

"Acho que a série é popular pela mensagem de positividade. As coisas dão errado [também], nós conhecemos pessoas o tempo todo que não acharíamos legais. Mas o autor se esforça em sempre mostrar os dois lados da história para que como público possamos assistir e ter empatia", destaca Antonia Thomas, que vive a médica Claire Brown.

"No centro da série tem uma mensagem de esperança, de aceitação, há histórias para pessoas marginalizadas que conversam muito com o mundo agora. É difícil ter uma série nos Estados Unidos que seja traduzível e se dê bem ao redor do globo. Precisamos um pouco de notícias boas agora e um pouco de compreensão", reforça Nicholas Gonzalez.

Globo/Mauricio Fidalgo

Jeito nacional

A febre das séries médicas chegou também à produção nacional. "Sob Pressão", produção da Globo, fez tanto sucesso, que a emissora desistiu de cancelá-la após três temporadas, e a renovou para mais duas partes. Agora, os roteiristas preparam um episódio sobre o coronavírus para a continuação da história dos médicos Carolina (Marjorie Estiano) e Evandro (Júlio Andrade).

A série usa de muitos elementos que tornaram suas contemporâneas sucesso de público, se valendo de características bem brasileiras.

"'Sob Pressão' é uma série médica mais ou menos clássica. Um casal de médicos protagonista, pacientes que participam de apenas um episódio, e um arco progressivo que tenta prender a atenção do público através da transformação gradual de seus protagonistas. O diferencial da série é o contexto, o espaço onde a ação acontece: um hospital localizado ao lado de uma comunidade em guerra e ignorado pelo poder público", destaca um dos autores, Lucas Paraizo.

Nossa realidade é nosso diferencial. E as soluções que os médicos utilizam em 'Sob Pressão' para salvar vidas não são nada convencionais. Não costumamos ver 'gambiarras' em 'Greys Anatomy', 'ER' ou 'House'. Mas aqui no Brasil nós não sobreviveríamos se os médicos não usassem às vezes recursos como esses. Acho que o público se enxerga na série pela dentificação com a realidade.

Paraizo também reconhece que a fórmula que rege as séries médicas é potente para a intensificação com a audiência: "Reúne elementos comuns a qualquer pessoa, independentemente do gênero, classe social, condição econômica: vida e morte, saúde, sobrevivência etc. As séries de hospital, na minha opinião, funcionam como espaços de catarse coletiva, de aprendizado com perdas e de revisões sobre condutas na vida. São também espaços de esperança e dor. E todos, se já não passamos, passaremos por isso".

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