Vida de Circo

Espetáculo mais brasileiro da história do Cirque du Soleil é criação da primeira diretora mulher da companhia

Do UOL em São Paulo Ryan Pierse/Getty Image

O Cirque du Soleil foi criado há 35 anos no Canadá, mas há dez se rendeu às cores do Brasil. Com forte inspiração nos sons brasileiros, o espetáculo "OVO" foi criado em 2009, dando um "zoom" em uma comunidade de insetos que tem sua rotina mudada pela chegada de um ovo.

Dançarina e coreógrafa, responsável por balés aclamados internacionalmente, a brasileira Deborah Colker é a primeira mulher a escrever e dirigir um show do Cirque du Soleil. Surpreendente? A própria Deborah não acreditou quando ouviu esta informação, há mais de uma década.

Eu falei: O quê? Nunca teve uma mulher? Vocês são machistas pra cacete, hein?

A primeira "briga" foi para conseguir fazer valer sua carta branca e colocar em ação suas ideias no espetáculo, primeiramente montado para as tendas do Cirque e que depois seria ampliado para as arenas, para viajar o mundo. Além dela, diversos outros brasileiros estão na empreitada, como o percussionista baiano Marquinho da Luz, ex-Timbalada, e o ex-atleta de saltos ornamentais Emerson Neves, técnico do espetáculo.

A segunda queda de braço foi para trazer "OVO" para o Brasil. Dez anos após sua estreia, Deborah enfim pode mostrar aos compatriotas - e à sua própria família - sua criação, que passou por Belo Horizonte e ainda tem datas no Rio de Janeiro (até 31 de março), Brasília (5 a 13 de abril) e São Paulo (19 de abril a 12 de maio).

Ryan Pierse/Getty Image
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Como "OVO" foi chocado

Deborah Colker tem uma carreira consagrada com sua companhia de dança e, por conta deste trabalho, recebeu em 2006 um convite para criar o seu espetáculo no Cirque du Soleil, em um processo longo até que fosse concebido e realizado "OVO". "Quando me chamaram, foi: 'você pode fazer o que quiser, o espetáculo é da Deborah com o Cirque", conta a carioca, de 59 anos.

A carta branca, é claro, precisava de adequação às necessidades e padrões da tradicional companhia canadense, liderada por Guy Laliberté e Gilles Ste-Croix como guias artísticos. A sugestão que recebeu era para que concebesse uma história ligada à natureza e biodiversidade. Após meses entendendo a estrutura do Cirque e passando semanas viajando para entender os espetáculos, Deborah pôde colocar em prática seu plano: traçar um paralelo entre o mundo do circo e o dos insetos.

Os insetos têm seis patas. Quando os acrobatas estão fazendo seus movimentos, parecem ter mais pernas e braços do que as pessoas normais. E, se você pensar nos ciclos da natureza, os insetos são fundamentais. Eles são o micro, mas são fundamentais. Então, pudemos relacionar o micro e o macro e mostrar como o menor transcende a anos de história.

O enredo mostra como uma comunidade de insetos reage à chegada de um inseto forasteiro, que todos querem rejeitar, como imigrante. Ele é tratado com preconceito e o ovo que ele traz vira motivo de disputa, o que se desenrola ao mesmo tempo em que se mostra sua paixão por uma joaninha. Um dos destaques são as performances no paredão de escalada criado por Deborah em sua companhia, desenvolvido ao lado de Gringo Cardia, designer de cenário e adereços.

'OVO' foi feito pensando em entrar no mundo micro. Pra gente, uma folha cabe na mão. Para um inseto, é uma terra de gigantes. Foram dois anos estudando insetos, indo a museus, conversando com entomologistas e olhando pelo microscópio.

Deborah Colker, criadora e diretora de "OVO"

Veja trechos do espetáculo "OVO"

Luciana Whitaker/Folhapress

A primeira mulher

Consagrada por sua companhia, Deborah Colker fez sua voz ser ouvida no Cirque

O feminismo virou palavra fundamental para discutir a sociedade nos últimos anos. Mas, há 13 anos, não era bem assim. À época em que Deborah Colker recebeu o convite para trabalhar com o Cirque du Soleil, ela estava desbravando águas ainda não navegadas, mesmo se tratando de uma companhia com mais de duas décadas de história.

"É engraçado falar nisso agora, de eu ser a primeira diretora mulher, porque de um tempo para cá, o empoderamento feminino cresceu, esse assunto está bombando. E essa história, para mim, já tem 13 anos. Na época, eu falei: 'Vocês vão celebrar 25 anos de companhia e eu sou a primeira diretora? O quê? Você são machistas pra cacete hein?' Eu até ria", conta a carioca.

Deborah teve de falar alto para ser ouvida plenamente, confiando em seu trabalho para mostrar que "OVO" tinha de seguir sua visão. "Foi um cabo de guerra, mas no sentido de que todo mundo puxava porque queria que o espetáculo ficasse bom".

A outra "treta" que durou uma década para trazer o espetáculo ao Brasil. "Briguei muito com eles. Eu falava: 'Gente, eu sou brasileira, sou superconhecida por lá, tenho minha companhia. Pelo amor de Deus!'. Em 2017 ainda veio um outro espetáculo ['Amaluna']. Eu fiquei revoltada", admite.

Canadá, Estados Unidos, Londres, Japão. O projeto rodou o mundo. "Minha mãe tem 84 anos e agora vai enfim poder ver, graças a Deus", comemora Deborah.

Dave J Hogan/Getty Images Dave J Hogan/Getty Images
Divulgação

Cores e sons: a ligação com o Brasil

Quando o Cirque chamou a brasileira, já tinha em mente que as influências do país apareceriam em seu projeto. Mas as criações de Deborah e companhia foram além e abriram novas possibilidades para os espetáculos da companhia.

"Antes, eles tinham cores mais sóbrias, estéticas new wave, góticas, coisas mais sóbrias. O colorido é brasileiro", diz ela, que apostou, junto à figurinista Liz Vandal, em fantasias vivas, como ela queria seus insetos. A iluminação reflete isso, com mais luzes, dando impressão muitas vezes de que a trama se passa de dia.

Além da imagem, o som é tipicamente brasileiro. "Tem forró, carimbó, baião... O número das formigas entra uma pegada que parece um baião, com frevo", cita ela. Pode-se esperar ainda ouvir bossa nova, samba, xaxado e até funk, com presença de muita percussão, um trabalho desenvolvido com o diretor musical Berna Ceppas.

Divulgação

Do YouTube ao Cirque

Músico conta como seus vídeos foram descobertos pela companhia

Até 2015, o percussionista baiano Marquinho da Luz, ex-Timbalada, morava de aluguel em São Paulo. Casado e com dois filhos, havia acabado de vender o carro para comprar um caríssimo vibrafone. A grana que ganhava tocando sertanejo não era das melhores e a perspectiva como músico de apoio parecia definhar. A sorte mudou de lado em agosto daquele ano, no dia em que recebeu um inesperado e-mail do diretor artístico do Cirque du Soleil. Ele estava sendo convidado para uma audição e, quem sabe, poderia integrar a banda da companhia.

"Foi maravilhoso. Minha mulher estava tomando banho, fiz ela abrir a porta do banheiro. Falei: 'Para aí um pouco'. Então comecei a ler o e-mail com ela, aos prantos". Marquinho foi descoberto pelo circo quase por acaso, quando começou a postar vídeos no YouTube para divulgar seu trabalho, logo depois de deixar o sertanejo para trás.

Hoje, ele é um dos oito músicos - quatro deles, brasileiros - que executam ao vivo a trilha do espetáculo "OVO". A música dos shows é assinada pelo compositor carioca Berna Ceppas, fortemente influenciada pelos sons do Brasil.

Um dia eu estava em casa, recebi um e-mail escrito 'Cirque du Soleil'. Na hora eu pensei que eram os caras me convidado para comprar convite.

Marquinho falou sobre sua reação ao receber o convite."Era um texto grande. Li duas linhas e parei. 'Olá, tudo bem, Marquinhos.' Já falando meu nome. 'Sou fulano de tal. Sou diretor artístico do Cirque du Soleil, vi uns vídeos seus no YouTube'. Aí eu parei de ler, cara. Não podia ser. Foi maravilhoso. O diretor me perguntou se eu tinha como gravar um vídeo para uma audição. E, se eu pudesse gravar, para gravar o quanto antes. Porque já havia umas pessoas participando do teste. Ele viu meu vídeo e eu acabei entrando de última hora na disputa."

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A música é praticamente, 85%, composta em cima do contexto da música brasileira. Vai do carimbó, baião, axé, samba, reggae, forró, frevo, bossa nova.

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Marquinho da Luz, Ex-Timbalada foi descoberto pelo Cirque por meio de vídeos no YouTube

Victor Chavez/WireImage  Victor Chavez/WireImage
Arquivo Pessoal

Artistas ou atletas?

Os dois. Ex-atleta de salto ornamental, Emerson Neves é técnico do espetáculo

Treinos pesados, viagens longas e lesões. Os movimentos precisos, técnicos e suaves dos membros do Cirque Du Soleil, no entanto, não retratam o peso dessa rotina exaustiva. Imersos em uma agenda que se parece muito mais com a de um esportista - e eles de fato são atletas -, os integrantes do espetáculo "OVO", trabalham sob a coordenação do brasileiro Emerson Neves, um ex-atleta de saltos ornamentais.

"Fui da seleção brasileira, disputei campeonatos mundiais e cheguei a me classificar para a Olimpíada", disse. A dificuldade veio com a aposentadoria, anos mais tarde. "Eu era muito bom naquilo. Foi difícil meu fim no esporte. Você termina e fica sem saber o que fazer da vida".

Depois de estudar fisioterapia, acabou sendo convidado para fazer shows de saltos na Europa. Foi nesta época que lhe sugeriram fazer um vídeo para o Cirque. Em 2006, começou a treinar para o espetáculo "O", mas uma nova lesão lhe surpreendeu. Ele continuou em Montreal treinando movimentos para o espetáculo "Saltimbanco", que estava no Brasil na época, e acabou sendo contratado entre 2007.

Mas a idade pode castigar um atleta de alta performance.

Eu entrei com 32 anos e fazendo disciplinas que não eram na água. Vi que meu corpo não ia aguentar. Era muito puxado. Eu sabia que não ia conseguir ser acrobata pro resto da vida.

Emerson deixou claro que era fã da companhia e gostaria de desempenhar um papel como técnico, cargo até então que não tinha nenhuma abertura no Cirque. Foi aí que surgiu um convite para trabalhar em Macau com o espetáculo "The House of Dancing Water", de Franco Dragone, onde ficou por três anos até ser convidado para o "OVO".

Com o Cirque du Soleil, pôde desempenhar seu papel de técnico e auxiliar os integrantes da equipe em uma rotina próxima de atletas de elite. "Estou correndo de um lado pro outro pra ter certeza de que todos estão bem". Emerson tem que lidar com os atletas, equipe de fisioterapia e toda a direção do espetáculo.

Agora, no Brasil, o técnico celebra o sentimento em mostrar seu trabalho e dos atletas que treina no país onde nasceu. "É muito especial. O esporte me proporcionou fazer parte dessa companhia. E isso me fez crescer e virar um técnico. Voltar para casa e apresentar o show que eu trabalho não tem preço", explica. Dos bastidores, agora pode celebrar o sucesso de seus atletas.

"Quando era artista, estava no palco e recebia os aplausos. É uma sensação que não tem como colocar em palavras. Hoje em dia eu me satisfaço em ver meus artistas atingirem o sucesso e terem o que tive também. Ver eles se superarem diariamente é o que me faz superar meus problemas".

Uma vez que você pisa no palco e faz aquilo, é algo que vicia. Isso não sai de você.

Emerson Neves, Técnico do espetáculo OVO, do Cirque du Soleil

Serviço

Brasília

Data: 5 a 13 de abril
Onde: Ginásio Nilson Nelson
Endereço: SRPN, S/N
Preços: entre R$ 130 e R$ 550
Informações: site oficial

São Paulo

Data: 19 de abril a 12 de maio
Onde: Ginásio do Ibirapuera
Endereço: Rua Manuel da Nóbrega, 1267-1331
Preços: entre R$ 130 e R$ 580
Informações: site oficial

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