Quem segura esse sucesso?

Depois da música e cinema, Coreia do Sul traça estratégias para, mesmo na crise, escalar cultura pop global

Leonardo Rodrigues Do UOL, em São Paulo Divulgação/Getty Imagens/Arte UOL

Era uma vez uma nação asiática em franco crescimento econômico, mas isolada política e culturalmente por uma ditadura, que aos poucos foi se abrindo para o mundo. Hoje, um dos epicentros da cultura pop global, essa mesma nação é dona de um mercado de entretenimento bilionário, com amplo reconhecimento internacional e potencial de crescimento a perder de vista.

A onda sul-coreana —conhecida como "hallyu"— é um tsunami que veio se formando paulatinamente há 30 anos, alavancado por um sólido projeto do país e que apenas recentemente pôde ser percebida claramente no Ocidente e no Brasil, com o sucesso do grupo BTS e do filme "Parasita", vencedor de quatro Oscars em 2020, incluindo o de melhor longa.

Com a pandemia do novo coronavírus, que paralisou engrenagens da cultura e tende a deixar um rastro ainda mais profundo nos próximos meses, o país já sente o baque em seu entretenimento, mas a experiência da Coreia do Sul ensina que, mesmo esse assim, esse maremoto não deve perder força nos próximos anos. Pelo contrário. Atacará em outras frentes.

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O que ainda virá por aí

O UOL fez uma pergunta a oito especialistas em cultura sul-coreana, entre fãs, analistas e artistas: quais serão os próximos fenômenos a pipocar em escala global, depois da música e cinema? As respostas variaram, mas convergiram um ponto importante: é preciso entender que vários potenciais hits já são grandes na Ásia e em outras localidades do mundo, com nichos rentáveis, esperando apenas por brechas de mercado.

Um deles são as séries e novelas, especialmente a do chamado k-drama. Muitas estreladas por astros do k-pop, essas produções já são uma realidade em plataformas de streaming como a Netflix e têm consumo crescente na Europa e em países da América Latina como o Brasil e Peru, que já passou a exibir dramalhões em horário nobre na televisão. Os gêneros da comédia e romance devem crescer ainda mais.

Outros fenômenos para ficar de olho: maquiagem (também masculina), cosméticos, moda e dança urbana —todas com influências ocidentais. Analistas já enxergam nessa efervescência uma terceira onda hallyu no mundo —a primeira surgiu na Ásia a partir dos 1990, e a segunda é a que vivemos há cerca de dez anos—, com campo para o crescimento digital, especialmente em mercados como o de games e animação. Investimento e planejamento não faltam.

Dois produtos de exportação da Coreia do Sul ainda darão muito o que falar. O primeira é a culinária, que já se expandiu para os Estados Unidos. E a outra são os produtos naturais e de saúde. As pessoas estão ficando mais preocupadas em comer bem, em ter hábitos saudáveis, e a Coreia está um passo a frente nesse quesito."

Eric Nam, cantor de k-pop

Christian Vierig/Getty Images

Como continuar crescendo na crise?

Primeiramente, com o forte apoio do governo da Coreia do Sul, quem mantém um projeto contínuo exportação e desenvolvimento da economia criativa. Diante da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus, autoridades já anunciaram, entre outras medidas, um investimento de 1,69 trilhão de wones (R$ 7,2 bilhões) em fundos de assistência para apoiar criadores de conteúdo a financiarem seus projetos.

Dentro desse valor, ainda está contido um fundo de investimento de risco de 80 bilhões de wones (R$ 341 milhões) voltado a produtores iniciantes, que servirá para desenvolver pequenas empresas e diminuir a dependência da cultura pop sul-coreana em grandes conglomerados —os chamados chaebol—, que dominam os mercados dos mais diversos produtos culturais e já estão freando investimentos.

A ideia é fortalecer as pequenas empresas, sobretudo da área digital para manter o crescimento da indústria criativa. "O modelo guiado grandes conglomerados —como Hyundai e Samsung está falido. Melhorar produtividade sul-coreana significa se voltar para um modelo mais digital e baseado em start-ups", afirma à revista "The Economist" o pesquisador Randall Jones, da Universidade Columbia.

Além disso, existem institutos de apoio ao audiovisual. Existe um fundo de apoio ao k-pop. A Coreia do Sul tem um projeto político e econômico. Depois da crise de 1997, o governo do presidente Kim Dae-jung entendeu que uma das melhores formas de continuar o crescimento das décadas anteriores era investir em indústrias criativas. Isso continuou sendo feito nos governos seguintes e continua até hoje.

Thiago Mattos, consultor de relações da embaixada do Brasil em Seul.

Mas por que deu tão certo?

Na opinião especialistas, alguns fatores pesaram na consolidação da "onda" hallyu no mundo, que abriu mercados e já abrange a maior parte da cultura jovem produzida país

  • O principal: amplo investimento estatal, principalmente a partir de 1998, quando o governo passou a turbinar a indústria criativa para divulgar a Coreia do Sul pelo mundo
  • Harmonia entre grandes empresas de conteúdo, como SM Entertainment, YA Entertainment, JYP Entertainment e a CJ Group, e o governo
  • Adoção de estéticas ocidentais, visando a exportação
  • Uso da língua inglesa, o que é comum na música
  • Contar com um público jovem, atualizado e crítico, que não aceita produções capengas e ajudou a aprimorar os produtos culturais
Astrid Stawiarz/Getty Images/Dick Clark Productions

Como começou a onda

O fenômeno cultural sul-coreano que testemunhamos hoje tem um "culpado": o k-pop. O gênero que despontou nos anos 1990 durante a redemocratização do país tem seu nascimento atribuído ao Seo Taiji and Boys, trio que aglutinava ritmo e visual ocidentais, inspirado no pop e rap americanos. Ficou na ativa por apenas quatro anos. Mas o sucesso surpreendeu e fez empresários crescerem o olho para o formato boy band.

Grandes empresas começaram a dominar o segmento, aproveitando-se de incentivos governamentais, e o gênero virou commodity espalhada pela Ásia e outros continentes. O segredo do sucesso dos "idols": jovens cuidadosamente pinçados via agências e concursos, com carreira e vida pessoal monitorada de perto por empresários.

Esse estilo alegre e colorido ganhou mais visibilidade a partir de 2012, após o sucesso viral de "Gangnam Style", do rapper Psy, o que também abriu espaço para discussões sobre o lado feio da indústria. Artistas são explorados por gravadoras, com casos de assédio e comportamentos exploratórios no meio, o que levou a uma onda de suicídio, como o das estrelas Sulli e Goo Hara. Vencer esse problema é o maior desafio para a manutenção do crescimento do mais bem-sucedido produto pop de exportação do país.

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Claro que existem muitos problemas dentro do k-pop. Mas o mundo entendeu que qualquer pessoa pode se manifestar dentro dessa cultura e se sentir representado. E a internet mostrou que há muita coisa legal acontecendo fora dos EUA e do eixo ocidental. A gente não aguentava mais consumir sempre mesmo produto, sempre da mesma forma. E o idioma deixou de ser barreira.

Gaby Brandalise, jornalista e especialista em k-pop

Reprodução

Como o cinema entrou nessa

Outro fenômeno preponderante para a onda hallyu é o crescimento da indústria cinematográfica. O sucesso de "Parasita" veio como mais um tijolo na construção do robusto muro das produções sul-coreanas. E ele precisou ser reconstruído. Depois da era de ouro entre os anos 1950 e 1970, o cinema local chegou ao fundo do poço com as inúmeras restrições impostas pela ditadura. Apenas em 1997, após a crise financeira asiática, a indústria voltou aos trilhos.

Na época, de olho no exemplo de norte-americano, o governo criou uma lei de audiovisual, estabeleceu um fundo para o setor e, em parceria com grandes empresas, passou a orientar políticas de exportação. O resultado: duas décadas de produções consagradas como "Oldboy" (2003), "O Hospedeiro" (2006), "A Criada" (2016) e "Em Chamas" (2018), entre tantos outros filmes que conquistaram prêmios e retroalimentaram um mercado pujante.

Apenas para se ter uma ideia: na primeira metade da década de 2000, os longas sul-coreanos cresceram tanto em quantidade e qualidade que, em 2006, motivaram uma campanha do governo americano para que houvesse mais espaço para as produções de Hollywood nos cinemas do país, que hoje (ou melhor, até o momento em que a pandemia fechou os cinemas e bagunçou o calendário) lança pelo menos um filme por semana, dividindo o mercado meio a meio com blockbusters dos Estados Unidos e outros países.

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Uma das qualidades do cinema da Coreia do Sul, assim como da cultura hallyu como um todo, é que ele não se fecha. Filmes como 'Parasita', por exemplo, têm roteiros que expressam uma situação que existe no mundo inteiro, a diferença entre ricos e pobres. Essa abrangência do 'soft power' mostra como o cinema aprendeu com os EUA e passou a ser feito para o mundo inteiro.

Yoo Na Kim, diretora-fundadora do Centro Cultural Hallyu

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