O jogo delas

"Game of Thrones" trouxe mulheres poderosas como protagonistas, mas também esbarrou no machismo

Beatriz Amendola Do UOL Divulgação e Montagem/UOL

Ao longo de oito anos, as mulheres deram as cartas em "Game of Thrones". Daenerys, Arya, Sansa, Cersei e outras tantas lutaram, sobreviveram, tramaram, criaram estratégias e sacudiram definitivamente a sociedade machista e patriarcal dos Sete Reinos. Foi um avanço definitivo não só para as produções de fantasia como para a TV no geral -- especialmente bem-vindo em uma época na qual se discutiu como nunca a diversidade.

Ao mesmo tempo em que colocou as mulheres como parte essencial da narrativa, no entanto, a série da HBO também escorregou em seu uso excessivo de corpos femininos nus e na sua relação complicada com a violência sexual - e vem sendo acusada, em sua leva final de episódios, de jogar no lixo o desenvolvimento de algumas de suas personagens mais importantes.

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Representatividade importa

Para suas protagonistas, "Game of Thrones" teve um papel essencial ao colocar personagens femininas como Daenerys e Sansa como líderes - a primeira, inclusive, se tornou uma referência de "girl power", e foi contraposta às tradicionais princesas Disney quando começaram a surgir várias artes e produtos com a frase "Não sou uma princesa, sou uma Khaleesi".

Emilia Clarke, a intérprete da Mãe dos Dragões, acredita que sua personagem e outras se tornaram fonte de inspiração para várias mulheres por conta dos paralelos traçados entre a história da ficção e o nosso mundo real.

É uma série que fala sobre poder e coloca mulheres em posições de poder. Isso é único.

"O mundo da série e o da vida real são completamente diferentes, mas há essa base fundamental de você ter uma ideia, acreditar nela o suficiente para as pessoas te apoiarem e acreditar mais ainda para se promover como alguém que pode liderar outras pessoas. Enquanto isso, no nosso mundo fantástico, a divisão de gênero é o que é, e na nossa sociedade, também. Há muitos paralelos que você pode traçar", contou ao UOL em fevereiro, antes da estreia da temporada.

Para Gemma Whelan, que na série dá vida a Yara, a líder das Ilhas de Ferro, "Game of Thrones" ajudou a melhorar a representação das mulheres na TV. "Havia esse desejo de ver personagens femininas sendo escritas de forma mais realista. Como 'Game of Thrones' está nos holofotes e tem tantos papéis femininos incríveis como tem papéis masculinos, acho que ela ajudou a aumentar as expectativas em torno do que os roteiristas vão escrever a partir de agora".

A série certamente alimentou essa necessidade de as mulheres serem retratadas como são, ou seja, pessoas completas, brilhantes, inteligentes, fracas, fortes e tudo o que vem no meio.

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Uma série feminista?

Em entrevista ao UOL em 2017, às vésperas da estreia da sétima temporada, Sophie Turner, a Sansa, foi mais longe que as colegas e chegou a definir "Game of Thrones" como uma produção feminista, dado o destaque dado às mulheres. "A série sempre teve a mesma atitude em relação às mulheres, e eu realmente acredito que essa é uma série feminista", disse, na ocasião, afirmando que o machismo enfrentando pelas personagens está relacionado ao da era medieval, o período histórico que inspirou a saga "Crônicas de Gelo e Fogo", de George R. R. Martin.

Para a série soar realista, você tem que colocar essas amarras sociais patriarcais sobre as personagens. Mas o que é notável, e que faz muitas pessoas responderem, é o fato de que essas personagens quebram essas amarras.

Ela não está errada. Mesmo em suas coadjuvantes, "Game of Thrones" retratou mulheres que quebravam os padrões. Além da própria Yara Greyjoy, a série também nos brindou com personagens como a cavaleira Brienne de Tarth e a pequena e forte Lady Lyanna, da Ilha dos Ursos, que em poucas participações se transformou em uma das mais notáveis da atração.

Elas comandaram o jogo

  • Daenerys

    Ela sofreu nas mãos de um irmão abusivo, foi forçada a se casar contra sua vontade e perdeu o marido e o filho que esperava, mas sobreviveu a uma pira de fogo - e saiu dele com três pequenos dragões. Daí em diante, Daenerys se tornou uma das mais determinadas líderes de "Game of Thrones": conquistou exércitos, libertou escravos, e teve de conciliar os desafios de governar cidades com sua noção violenta de justiça. Ao finalmente chegar a Westeros, ela sofreu grandes revezes: perdeu dois dragões, seu grande conselheiro, sua melhor amiga e se viu traída por todos a sua volta, o que, em um movimento controverso, a fez lançar uma espiral de destruição contra Porto Real.

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  • Cersei

    A grande vilã da série foi também uma de suas personagens mais bem construídas. Uma mulher com tino e ambição para a política, ela foi podada pelo pai, Tywin Lannister, e forçada a um casamento com um homem que não só não a amava como a desprezava. Ela encontrou afeto no relacionamento com o irmão, Jaime, com quem teve três filho pelos quais era capaz de tudo -- inclusive a morte. Ao ficar viúva, ela se viu mais perto do poder que lhe havia sido negado, e se tornou uma das grandes articuladoras da política dos Sete Reinos, ainda que nem sempre tomasse as melhores decisões. Ela passou por uma grande humilhação pública, perdeu os três filhos e se viu isolada como nunca, mas conseguiu chegar, enfim, ao Trono de Ferro, para depois sucumbir à destruição de Daenerys.

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  • Sansa

    A filha de Ned Stark foi, claramente, uma das personagens que mais evoluiu na trama. A menina que sonhava em ser uma rainha e tinha uma paixonite pelo cruel príncipe Joffrey viu o pai ser cruelmente executado e se tornou refém dos Lannister em Porto Real -- e acabou aprendendo uma ou outra coisa com Cersei no processo. Forçada a se casar com Tyrion, ela conseguiu fugir da capital com a ajuda de Mindinho, com quem aprendeu as artes da manipulação política. Ela comeu o pão que o diabo amassou em um casamento arranjado com Ramsay Bolton, que a violentava, mas conseguiu escapar e, após salvar o dia na Batalha dos Bastardos, o deu de comida aos cachorros. Depois disso, ela se tornou Lady de Winterfell e mostrou que sabe governar -- e muito bem.

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  • Arya

    O oposto da irmã, ela sempre deixou bem claro que não tinha interesse em castelos e casamentos, mas em espadas e arco e flechas. A menina começou seu treinamento com Syrio Forel e, após ver o pai executado, deu início a uma verdadeira jornada de sobrevivência, enquanto jurava se vingar daqueles que fizeram mal a sua família. Ela perdeu amigos e ganhou habilidades enquanto fugia pelos Sete Reinos, acompanhada de sua inseparável Agulha. Do outro lado do mar, em Essos, ela passou por um árduo treinamento com os Homens Sem Face e voltou, finalmente, para casa. Ela se tornou a grande heroína da Batalha de Winterfell ao derrotar o temido Rei da Noite.

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Problemas

Ter um elenco cheio de personagens femininas não impediu, no entanto, que "Game of Thrones" também escorregasse. A começar pela falta de representação por trás das câmeras: ao longo de oito temporadas, só uma mulher, Michelle McLaren, dirigiu episódios da série, e só duas, Vanessa Taylor e Jane Espenson, foram creditadas como roteiristas.

Na história em si, o ponto mais controverso em relação às personagens femininas foi a forma como a série tratou a violência sexual -- e sua relação com elas.

Na quarta temporada, causou controvérsia uma cena envolvendo Cersei e Jaime: à beira do caixão do filho Joffrey, o cavaleiro avançava sobre a irmã, que resistia, enquanto repetia que ela era "uma mulher ruim". Tanto o diretor do episódio, Alex Grave, quanto os atores Lena Headey e Nikolaj Coster-Waldau vieram a público dizer que o ato dos dois era consensual, mas a cena deixou um gosto amargo no público.

Poucos episódios depois, na quinta temporada, o estupro de Sansa por Ramsay, em sua noite de núpcias, também causou choque. A cena foi criticada tanto por sua brutalidade como pela opção, por parte dos showrunners, de focar a câmera a reação de Theon Greyjoy, que presenciava o ataque.

Final controverso

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Na reta final, o próprio desenvolvimento das personagens femininas vem deixando a desejar. Justiça seja feita, isso também ocorre com personagens masculinos como Jaime, Tyrion e o próprio Jon Snow - mas parece ter sido mais acentuado com as mulheres da série.

Daenerys, que em outras temporadas lutou contra seus impulsos mais sombrios, cedeu à loucura após sofrer graves perdas. A forma apressada como a trama conduziu isso, no entanto, parece ter reduzido a personagem ao estereótipo de mulher louca e impulsiva, principalmente se considerarmos que ela optou por "governar pelo medo" logo após ser rejeitada por Jon. Incomodou também que Cersei, ainda que tenha tido um fim poético soterrada sob a Fortaleza Vermelha, pouco tenha feito para parar a Mãe dos Dragões quando notou que a destruição estava próxima. Ela, a mais articulada vilã da série, não tinha um plano B?

Uma fala de Sansa no quarto episódio da temporada também causou indignação em boa parte dos fãs e da crítica. "Se não fosse por Mindinho e Ramsay, eu ainda seria um passarinho", disse ela em um diálogo com Sandor Clegane, parecendo atribuir aos dois vilões a sua força. A afirmação provocou críticas até da atriz Jessica Chastain, colega de Sophie Turner no filme "X-Men: Fênix Negra".

"Estupro não é uma ferramenta para tornar uma personagem mais forte. Uma mulher não precisa ser vitimizada para se tornar uma borboleta. O passarinho sempre foi uma fênix. Sua força se deve a ela e apenas ela", escreveu no Twitter.

No fim das contas, "Game of Thrones" deixou sua marca com personagens femininas que se tornaram ícones da cultura pop e deixaram um legado indiscutível; os flertes da série com o machismo, porém, dificilmente vão envelhecer bem -- e o público pode não perdoar o que a atração da HBO fez com Daenerys, posicionada desde o começo como uma de suas principais heroínas.

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