Budista moderno

Arnaldo Antunes se volta à política, alveja governo Bolsonaro e, ainda assim, mantém a aura "zen"

Leonardo Rodrigues do UOL, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

Depois de uma longa tarde de ensaios, Arnaldo Antunes chega à entrevista, agendada em um escritório na região central de São Paulo, pontualmente —e falamos de pontualidade literal, de 18h cravadas. "Quando saio de ensaio, saio no maior pique", ri o ex-Titã, 59 anos e vitalidade juvenil. A disposição para papear sobre qualquer tópico e posar —ao som de Bob Marley— para as fotos que acompanham esta entrevista parece ter saído de alguma aparição dos Titãs na TV dos anos 1980.

A fase é frutífera. Encerrado o segundo ciclo dos Tribalistas, que lotou arenas e conseguiu o feito de, em plena era sertaneja, colocar um disco de MPB no topo no Brasil e Portugal, Arnaldo está inquieto. Seu novo álbum, "O Real Resiste", e especialmente a faixa-título, é certamente um dos manifestos mais explícitos da carreira, em que se revela um artista frontalmente combativo ao grupo que comanda o país e a todos os seus apoiadores. Na entrevista e na música, Arnaldo faz questão de tocar na política.

A expressão ao vivo de seu protesto artístico —entre outras manifestações, no entanto, vai demorar para acontecer. Com a pandemia do coronavírus, que vem provocando cancelamentos em efeito cascata no mundo, a turnê que começaria em março e passaria por várias capitais brasileiras este ano, com Arnaldo Antunes acompanhado apenas de um piano no palco, teve de ser adiada sem previsão de início. Nada que interfira em sua paz de espírito.

"É frustrante, mas tento ver isso como uma oportunidade para uma reflexão e reavaliação de valores e necessidades", reflete ele, com a serenidade do "budista moderno" que é. Antes, a pedido do fotógrafo do UOL, Arnaldo havia sentado no chão e emendado de cara, por conta própria, uma posição de meditação. Sua elasticidade é espantosa. "Você faz ioga?", questiona o repórter, inocente. "Não, faço show." E ele vai continuar.

Marcus Steinmeyer/UOL

Arnaldo Antunes e a política

Seu álbum se chama "O Real Resiste". De que real e de que resistência você está falando exatamente?

O título é bem evidente. A gente espera uma reação das pessoas, de carne e osso, que respiram, que comem, que transam, que querem ter seus direitos civis, humanos, trabalhistas respeitados. Pessoas reais. Parece que a gente está vivendo dentro de um pesadelo.

Que pesadelo?

Essa música fala de indignação. Da situação política inacreditável que a gente se encontra agora. É isso. Pessoas estão se orgulhando de coisas que a gente se envergonha. Estão ameaçando coisas que a gente preza. É uma situação de inversão de valores. Inversão de realidades factuais.

Que exemplos você daria disso?

A terra não é plana. Nazismo não foi movimento de esquerda. ONGs não colocaram fogo na Amazônia. Greenpeace não jogou óleo no mar. É desgastante e uma loucura ter que defender coisas muito primárias: o jornalismo, educação, cultura, meio ambiente, diversidade, direitos humanos.

Tudo isso são conquistas que levaram anos. É muito retrocesso.

Como chegamos a este momento? De quem é a culpa?

Ninguém tem essa resposta. É uma coisa que não é só no Brasil. O extremismo de direita está em vários países. É algo novo que se utiliza das redes sociais de forma muito eficaz. Acho que as pessoas se valeram de um descontentamento. De um espírito contestatório jovem. Mas direcionaram isso na forma de muitas mentiras. Uma indignação por dia. Uma mentira por dia.

É mais do que um problema ideológico, então.

Você pode ser de direita, esquerda, centro. Mas quando você vê pessoas contra a democracia, contra valores democráticos modernos, é inacreditável. Por isso que digo que vivemos um pesadelo. Dá um desânimo na humanidade ver pessoas apoiando um projeto político que caminha em direção ao autoritarismo.

Em "O Real Resiste" você fala de terraplanismo, neonazismo e "tirania eleita pela multidão". É sua música mais politizada dos últimos tempos, quiçá da carreira?

Não sei dizer. Não tenho esse termômetro. Já fiz uma música como "Óbitos", do meu penúltimo disco, e "Comida", do Titãs. Às vezes você é contestador ao falar sobre uma relação de amor. A maneira como você fala é importante para alargar a consciência e a sensibilidade das pessoas. Essa é a função do artista, que é revolucionária em si.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Arnaldo e mais política

Na música "João", que abre o disco, você diz que não se inaugura uma nação com monumentos ou balas de canhão. Isso me lembrou o Monumento às Bandeira em São Paulo, que louva os bandeirantes, mas também pode ser interpretado como um ícone escravagista. Faz sentido?

Sim. Nessa música, eu falo do outro lado da moeda da música "O Real Resiste", o da positividade. Aí, sim, cabe um tipo de nacionalismo, que não é o sentimento patriótico de bandeira de hino.

De que forma você se sente nacionalista?

Eu me sinto brasileiro quando escuto João Gilberto. Quando existe uma fundação de uma sensibilidade que identificamos como nossa, de um país. Essa sensibilidade é o oposto de tudo que a gente não quer. E ela está sendo ameaçada. Mais do que nunca temos que defender a cultura, as comunidades indígenas, o meio ambiente...

Você não acha que o vem sendo atacado pela nova direita é menos a esquerda, cuja definição está basicamente ligada à economia, e mais o progressismo, a ideia de defender causas sociais?

O que acontece é que pessoas passaram do antipetismo para uma coisa maluca. Inventaram uma ameaça comunista para se afirmarem. E continuam se afirmando diariamente na negação da esquerda.

É um absurdo tratar seu adversário político como inimigo mortal. Essa coisa de 'vamos metralhar a petralhada' é um discurso muito violento, intolerante com a diversidade. Hoje, a liberdade de expressão e a democracia são ameaçadas de todos os modos.

E a mídia ainda compra a ideia de que o país está polarizado entre extrema esquerda e extrema direita. Não existe extrema esquerda no Brasil. Não existiu durante governos do PT. Eram governos em que se podia dialogar de forma mais garantida que hoje.

Digo que o que existe de polaridade hoje é isto: de a gente ter que defender valores democráticos quando isso está sendo ameaçado.

Uma pergunta 'inédita': artista tem que se posicionar?

(risos) Não acho que o artista tem papel político. Que tenha que assumir essa voz. Artista é livre para falar sobre o que quiser. Eu como artista posso falar de amor, falar dos meus filhos. Posso falar do João Gilberto. De notícias de jornal. Do momento político.

Mas acho que há momentos do nosso contexto político, social e econômico que são muito radicais. Que exigem um posicionamento. Nem é dos artistas, mas dos cidadãos que querem exercer a cidadania, de quem tem um pouco de civilidade e dignidade para defender nossas conquistas.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Arnaldo Antunes e música

Em 'O Real Resiste' você volta ao formato canção, em disco de pegada acústica, depois de um mais pesado. Por quê?

Essas nuances sempre conviveram nos meus discos. Faço coisas pesadas, canções, coisas experimentais. Em algumas fases predomina mais um tipo de atitude. Estou vindo de um disco que tem um peso rítmico muito evidente, com sonoridade de banda. O show era dançante, e fui sentindo que era momento de ficar mais introspectivo, mais enxuto na formação instrumental.

Já íamos esquecendo de falar de Tribalistas.

Ah, é. (risos)

O retorno do Tribalistas foi um sucesso tremendo. O que foi um sucesso orgânico e o que foi apenas nostalgia?

Acho difícil generalizar. Acho que faz parte do ser humano querer matar saudade de uma coisa.

Quando decidimos fazer a turnê, ficamos surpresos. Gravamos um disco novo e ficamos curiosos sobre a reação das pessoas. Mas elas cantavam as músicas novas com calor, com empolgação. Não era só nostalgia.

Foi a primeira turnê do grupo...

Para a gente, foi um sonho lindo e inédito. Porque no primeiro disco a gente não conseguiu. Marisa teve neném logo depois que ele saiu. É como se fosse um sonho guardado que agora foi realizado.

Como se sentiu na turnê sendo popstar outra vez?

(risos) Estar junto do Carlinhos e da Marisa no palco é prazeroso. A gente timbra bem junto, digamos assim. E a gente é amigo. A gente se ama. É uma felicidade tremenda estar com eles. E a banda também é muito bacana.

O que você acha dos Titãs hoje, com essa formação enxuta? Ainda fazem sentido?

Quem quis continuar com os Titãs foi se adaptando. Branco começou a tocar baixo. Depois entrou o Beto Lee, e a instrumentação mudou. Eles continuam com espírito criativo aceso. Estou curioso para ouvir o próximo disco. São amigos. Uma banda que começou com oito e agora, na resistência da formação original, só ficaram o Branco, o Britto e o Bellotto. Acho legal manterem o espírito da parceria.

Não sente falta de estar em uma banda como eram os Titãs, com vários integrantes?

Não, porque trabalho com muita gente. Agora não estou, mas os músicos com quem geralmente trabalho têm esse espírito de banda. O que sinto falta dos Titãs é de uma alegria, de uma experiência de compor.

Como assim?

Depois de sair dos Titãs eu me encontrei na questão de grupo com os Tribalistas. Sinto falta daquela coisa de ficar o tempo todo fazendo músicas. Muitas músicas. Uma exuberância. Uma fertilidade criativa muito interessante. De ficar à vontade com parceiros e poder jogar ideia fora sem muito pudor.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Arnaldo Antunes e Arnaldo Antunes

Você costuma ser associado à figura do artista autoral, do poeta 'cabeçudo'. O que você faz para desanuviar em casa, fora do contexto artístico? Curte futebol?

Não jogo futebol. Quando era jovem, jogava. Não acompanho futebol atualmente. Tenho fases que acompanho mais. Torço para o Santos e acompanho mais em alguns momentos e em Copa. Mas estou um pouco afastado.

E pra desanuviar fora das artes?

Tenho relações afetivas, familiares. Tenho meus filhos. Mas gosto mesmo é de de ver filme. Ler. Escrever, compor, tocar violão. Essas coisas que são trabalho também são meu lazer. Não tenho que desopilar de nada. (risos) Quando saio do ensaio, saio na maior energia, porque adoro.

O que Arnaldo está vendo e lendo?

  • Sim, ele gosta de filmes do Oscar

    "Gostei do 'Coringa' [longa de Tod Philips que deu o Oscar de melhor ator este ano a Joaquin Phoenix]. Ainda não vi 'Parasita'. Quero ver."

  • E não-ficção é preferência na prateleira dele...

    "Adorei o livro da Eliane Brum, 'Brasil Construtor de Ruínas'. Acho que todo mundo precisa ler."

  • ... embora ele também goste de romances

    "Também gostei  do último livro do Chico Buarque, o 'Essa Gente'."

  • Leitura social também tem vez:

    "Também tenho lido livros dos nossos líderes indígenas. Recomendo o 'Ideias para Adiar o Fim do Mundo', do Ailton Krenak. Ideias para esse momento em que tem tanta gente querendo acelerar o fim do mundo. (risos)"

Você vai fazer 60 anos em 2020. Como está lidando com o envelhecimento?

Não está sendo muito diferente não. (risos)

Continuo querendo coisas que me tirem do sofá, não que me acomodem. Desejo manter uma chama acesa. Claro que existe apaziguamento da idade. Seu corpo já não tem a mesma vitalidade. Seus filhos crescem. As coisas vão mudando. Mas meu desejo de manter uma certa inquietude permanece.

Dá para dizer que é a mesma inquietude do passado?

Só acho que agora ela vem misturada com outras coisas. Mais experiência, maturidade. Coisas que a vida também te tira e te traz. A idade tem ganhos e perdas. Mas a inquietude criativa não muda em mim.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

Leia também:

Keiny Andrade/UOL

Minha vida é um reality show

Como Dani Russo saiu da periferia, virou youtuber milionária e quer conquistar o mundo, mesmo sem se planejar

Ler mais
Júlia Rodrigues/Divulgação

Rap paz e amor

Emicida tem um sonho: acalmar os ânimos do cidadão comum com seu novo disco

Ler mais
Divulgação

Estranho Mundo de Zé

Das unhas folclóricas à genialidade nos filmes de terror: Zé do Caixão fez história no cinema e na TV

Ler mais
Topo