Estranho Mundo de Zé

Das unhas folclóricas à genialidade nos filmes de terror: Zé do Caixão fez história no cinema e na TV

Leonardo Rodrigues Do UOL, em São Paulo Divulgação
Flávio Florido/Folha Imagem

O ano é 1982, e, acompanhado de duas assistentes sensuais, Zé do Caixão está inerte no palco do programa "Viva a Noite", no SBT, comandado por Gugu Liberato. O ambiente é tenso: ele se prepara para cortar, supostamente pela primeira vez, as gigantescas unhas do personagem e voltar a ser apenas José Mojica Marins. A primeira a ser podada, a do polegar da mão esquerda, é dedicada a Zé Ramalho, "porque Zé conversa com Zé", justifica ele pouco antes de o aparecer nos estúdios da Barra Funda e cantar a música Admirável Gado Novo.

Se você viveu nos anos 1980 e 1990, provavelmente, acompanhou essa cena, exibida e reencenada diversas vezes na TV e em tantas outras oportunidades --incluindo show do Sepultura. Diretor, ator, roteirista de cinema e TV, José Mojica era exatamente isso. Um gênio generoso da autopromoção, que, por algum caso, também se tornou um dos maiores cineastas brasileiros, ícone do movimento marginal e pai do terror nacional. É quase unanimidade: os filmes brasileiros não seriam os mesmos sem ele.

Provocador, niilista, gênio criativo, celebridade televisiva, ícone trash e acima de tudo um descrente obsessivo, Mojica se confunde com a imagem de sua obra e criações. Além do terror que lhe rendeu louros, também produziu melodrama, aquele que é considerado o primeiro faroeste nacional e fotonovelas. Mas nada se compara ao legado de "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (1964), em que ele inaugurou um gênero e apresentou o lendário agente funerário Zé do Caixão, um monstro humano que misturava lobisomem, Drácula e Dr. Frankenstein e Nitzsche.

Autor de mais de 40 filmes, José Mojica morreu na tarde de hoje em São Paulo, aos 83 anos, vítima de uma broncopneumonia. Estava internado há cerca de três semanas no hospital Santa Maggiore, desde que contraiu uma infecção que evoluiu para pneumonia. Seu delicado quadro de saúde vinha se agravando desde 2014, quando sofreu um enfarte e passou a viver na reclusão, ajudando a alimentar ainda mais o mito. Mojica pode ter partido, mas Zé do Caixão permanecerá entre nós.

Fernando Moraes/Folhapress Fernando Moraes/Folhapress

Encarnação do Demônio

José Mojica Marins era um gigante. Ainda assim, faltam palavras para definir sua importância na arte e cultura do país. Sua maior criação, o coveiro Zé do Caixão, é um dos grandes personagens do terror mundial, um provocador à frente do seu tempo, que flertava com as instituições (fossem políticas, fossem religiosas) ao mesmo tempo que destilava seu desprezo por qualquer ordem que não fosse a sua.

Era o auge da ditadura militar no Brasil quando criador e criatura tomaram o imaginário com uma série de filmes diferentes de tudo que era feito aqui (e pelo mundo). Sem educação cinematográfica formal, Mojica se mostrou um esteta, um arquiteto visual capaz de construir atmosferas apavorantes em filmes elegantes em sua estética trash.

Como boa parte dos artistas marginais brasileiros, encarou em boa parte de sua vida o desprezo de seus pares, redescoberto nos anos 90 quando sua obra tomou o mundo - o ator Paul Giamatti certa vez me confessou sua vontade absurda em trabalhar com "Coffin Joe".

Mas sua carreira já chegara ao entardecer, encerrada com o ousado Encarnação do Demônio, filme que merece ser revisto como testamento do talento de um gênio. José Mojica Marins não está mais entre nós. Mas seu legado é eterno, e os cantos escuros da mente de quem conheceu sua obra sempre serão assombrados pela figura apavorante do Zé do Caixão, esperando pacientemente a meia-noite para levar nossas almas.

Análise

  • Roberto Sadovski

    Zé do Caixão, é um dos grandes personagens do terror mundial, um provocador à frente do seu tempo, que flertava com as instituições (fossem políticas, fossem religiosas) ao mesmo tempo que destilava seu desprezo por qualquer ordem que não fosse a sua. Era o auge da ditadura militar no Brasil quando criador e criatura tomaram o imaginário com uma série de filmes diferentes de tudo que era feito aqui (e pelo mundo).

    Imagem: Flavio Florido/UOL
  • Andre Barcinski

    O José Mojica Marins é um heroi do cinema brasileiro. É um criador 100% independente, autoral, um cara que nunca fez parte de nenhuma onda ou movimento. Fez tudo sozinho sempre e isso é o que destaca ele. Os filmes são completamente sem compromisso com o comercial, com o que as pessoas acham que é bom. Um cara que criou um personagem que entrou para o folclore brasileiro. Assim como a Mula sem cabeça, o Saci, tem o Zé do Caixão.

    Imagem: Lucas Lima/UOL
João Wainer/Folhapress

Início criativo

Nascido em uma fazenda pertencente à fábrica de cigarros Caruso, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, filho de artistas circenses, José Mojica Marins passou parte da infância vivendo nos fundos de um cinema na Vila Anastácio, onde o pai trabalhava. Leitor voraz de quadrinhos, ganhou uma câmera V8 na infância, quando começou a filmar e editar artesanalmente praticamente sem orientação.

Instintivo e autodidata na adolescência, logo percebeu que não conseguiria fazer os filmes que queria se não tivesse atores para isso. Nos anos 1950 montou a Companhia Cinematográfica Atlas e uma escola de atores, que serviu de laboratório para suas primeiras experiências realmente profissionais. Sem dinheiro, passou a adotar uma direção crua e por vezes violenta, em uma espécie de neorealismo involuntário. Nascia ali um estilo.

Também era o início de uma estratégia que marcou praticamente toda sua carreira, marcada por dificuldades de financiamento: o improviso. Para lançar A Sina do Aventureiro, em 1958, seu primeiro longa sonoro completo, ele usou de uma artimanha para atrair público ao Cine Coral, em São Paulo. "Era difícil você entrar uma semana, e ficar três semanas em cartaz num cinema era mais difícil ainda", disse Mojica em entrevista ao Portal Brasileiro do Cinema.

"O que eu fiz? Eu pegava os meus alunos, numa época em que os cinemas tinham fila, e dividia um grupo de alunos numa fila, outro grupo em outra e mais outra. Então ficavam todos no meio da fila e diziam: "Pô, a gente perdendo tempo nessa fila, passando um filme tão boa no Cine Coral!". Com isso, eles saíam de lá e levavam o pessoal da fila. E ia todo mundo para o Cine Coral. O filme foi muito bem nas capitais."

UOL

O dia em que Zé do Caixão aprendeu a bater papo na internet

Zé do Caixão ainda não tinha internet em casa quando apareceu na sede do UOL no dia 20 de maio de 1997, de camisa preta e agasalho sintético -coveiro raiz—, para trocar uma ideia com um novo público consumidor de seu terror e de sua figura pitoresca: o "amigo internauta". Mostrando simpatia e descontração Mojica não se furtou de responder perguntas pessoais, profissionais e religiosas, com direito a maldição lançada sobre os participantes do chat.

  • Como cuida das unhas

    O problema das unhas é simplesmente protegê-las para que ninguém as quebre. Uso elas há 34 anos. O instinto faz com que se aprenda a defendê-las, até quando se dorme.

  • Zé pacifista

    Tive, no passado, muitos problemas com a igreja. Acompanhando a evolução para enfrentar o terceiro milênio, essa parte já foi superada. Acho que me dou bem com todas as religiões, pois minha mensagem é PAZ.

  • Sexo com jeitinho nos filmes

    Sendo um sexo suave, sem apelação, com certeza dará ibope e estou preparando obras tanto para a televisão como para cinema.

  • Dorme num caixão?

    O personagem é um agente funerário. Ele considera o caixão o melhor lugar para dormir.

  • Sem sucessor

    Quanto a pergunta sobre meu sucessor, não tenho. São muitas pessoas que fazerm esse gênero no mundo, mas a filosofia do Zé do Caixão é única em todo o planeta.

  • Zé fã de pós-punk

    Narcysus, gosto de todos os tipos de música, especialmente os sons pesados, que se identificam com meu gênero. Gosto de Bauhaus.

  • Profecia internética

    Participar de uma bate-papo é uma experiência nova para mim, mas como eu sou um homem futurista, acredito que esse é o caminho para que, futuramente, em uma simples pílula viajaremos por todo o universo.

  • Como cria sangue nos filmes?

    Depende da produção. Catchup, chocolate com groselha, sangue de galinha ou sangue americano, como é chamado o produto, são os materiais que uso nos filmes em cenas "sangrentas"

  • Medo de morrer?

    Tenho medo de morrer sem encontrar um patrocinador para todos os meus projetos. Com certeza ele ficaria na história mundial.

  • Niilista

    Zé do Caixão não acredita em espíritos. Não acredita em nada, só na mente. Mas, é bom seguir aquele provérbio espanhol: Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay.

João Wainer/Folhapress

O mito

Mojica Marins criou o Zé do Caixão, seu personagem mais famoso, em outubro de 1963, após ser atormentado por um pesadelo em que um vulto o arrancava da cama e o arrastava até o próprio túmulo, com nome e datas de nascimento e morte inscritas na lápide. Segundo Mojica, o episódio transformou sua vida e criou uma obsessão: inspirado pela literatura pulp e por clássicos como "Drácula", "Nosferatu", "O Médico e o Monstro" e "A Noiva de Frankenstein", ele queria criar o filme de terror perfeito, mesmo com sérias restrições orçamentárias.

O resultado, o filme "À Meia-Noite Levarei Sua Alma", apresentou o primeiro personagem do terror brasileiro, interpretado por ele mesmo, e se tornou um sucesso do cinema alternativo, elevando o cineasta ao status de de protagonismo da Boca do Lixo. O filme só conseguiu ser realizado devido ao esforço do cineasta e de sua família, que teve de vender carro e móveis para conseguir contratar uma equipe por três semanas.

O longa ganhou continuação dois anos depois, dando início ao uma rica filmografia que celebrizou um estilo seco, personalista e fortemente improvisado, muitas vezes usando de ketchup a pipoca para reproduzir sangue e gelo. Por causa de suas excentricidades, ele chegou a ser ridicularizado por colegas e críticos, embora tivesse reconhecimento de nomes importantes da época, como Glauber Rocha e Carlos Reinchenbach.

"O Zé do Caixão é uma personagem que desafia a própria natureza, que utiliza a força do pensamento. Não tem religião, não tem Deus, não tem o diabo. Só sede de justiça. Ele é revoltado com a própria natureza. Gosta de desafiá-la e de questioná-la. A pergunta que fica é uma só: se não tivesse a tesoura e deixasse a coisa ao natural, até onde chagaria? As unhas compridas, como garras para segurar o mundo e tudo que ele deseja", afirmou Mojica em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1986.

Leo Caobelli/Folhapress

Censura e abusos

A pegada explícita do cineasta rapidamente passou a despertar atenção do Brasil e, depois da outorgação do AI5, em 1968, do governo federal. A partir de 1969, seus filmes passaram a ser alvo de censura em Brasília. O filme "O Ritual dos Sádicos", um dos símbolos da mudança de seus personagens para um universo mais realístico, com uso de drogas, violência policial e estupro, foi proibido de ser exibido no Brasil. Seus filmes anteriores também passaram a ser alvo, e logo o cineastas se viu de mãos atadas e sem perspectiva.

A saída: mudar de ares. Nos anos 1980, a figura de Zé do Caixão, de voz característica e recitada, foi descoberta pelos produtores de TV e pelo cinema da pornochanchada, um dos mais lucrativos filões do entretenimento dos anos 1970. A aventura rendeu títulos como "A Virgem e o Machão", "Como "Consolar Viúvas" e "Perversão". Em alguns momentos, Mojica tentava misturar a temática fantmasgórica à comédia. Nos filmes de sexo explícito, chegou a usar o pseudônimo J. Avelar. Ele só voltaria à velha forma décadas depois, com "Encarnação do Demônio" (2008), terceiro capítulo da trilogia iniciada com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (1964) e "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967).

Longe das câmeras de cinema e reinventado na TV e no entretenimento de terror, incluindo participação em parques temáticos e programas na TV Bandeirantes, como a versão brasileira da série Contos da Crypta apresentada por ele nos anos 1990, outros fantasmas passaram a atormentar o cineasta, que sempre se arrependeu de decisões que resultaram em perda de dinheiro e controle financeiro sobre suas obras.

Segundo relatos, incluindo passagens da série "Zé do Caixão" (2015), exibida no canal Space, Mojica usava de métodos radicais no tratamento dos elencos de filmes, especialmente o feminino. Ele teria chegado a bater no rosto e mulheres e as submeter a testes macabros e de coragem, as obrigando a comer insetos vivos e a tomar choque elétricos. Para chamar a atenção da imprensa, o próprio Mojica se denunciava à polícia.

Angelo Pastorello/Divulgação

13 curiosidades

  1. José Mojica Marins nasceu em uma sexta-feira 13, no dia 13 de março de 1936, e ele jurava que a gestação durou 11 meses.
  2. Ele já foi candidato em duas eleições. Em 1982, tentou se eleger como deputado federal pelo PDT em São Paulo e foi derrotado. Em 2004, candidatou-se pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão) ao cargo de vereador, mas também não obteve êxito.
  3. Homenageado no festival de Sundance em 2001, Zé do Caixão virou um ídolo cult nos Estados Unidos a partir dos anos 1990, quando seus filmes passaram a ser distribuidos no país.
  4. Mojica deixou as unhas crescerem várias vezes durante a vida, ficando anos sem cortá-las. Elas chegaram a ter cerca de 25 centímetros de cumprimento.
  5. Aos 4 anos, foi convidado pelo projetista a dar uma olhada no tela do cinema justo no dia em que era exibido um filme sobre doenças venéreas para as mulheres. "A primeira coisa que eu vi foi uma vagina em close, cheia de gonorreia."
  6. Em um dos casos mais famosos de censura envolvendo seus filmes, o diretor teve que redublar a cena final em que Zé do Caixão nega a existência de Deus até a beira da morte em "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967).
  7. Em 2014, ele foi homenageado pela escola de samba paulista Rosas de Ouro, desfilando como destaque no carro alegórico "Terror ao Amor", junto de outros personagens do horror como Chuck, do filme "Brinquedo Assassino".
  8. O nome verdadeiro do personagem Zé do Caixão é Josefel Zanatas. "Fel por ser amargo e Zanatas porque de trás para frente dava Satanás", explicou.
  9. Mojica só conseguiu terminar a trilogia iniciada com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (1964), e "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967) quatro décadas depois, com "Encarnação do Demônio" (2008), estrelado por Milhem Cortaz e Jece Valadão.
  10. Em quase todos os filmes da saga de Zé do Caixão, exceção feita a "Encarnação do Demônio" (2008), Mojica foi dublado por atores como Laercio Laurelli e Araken Saldanha, o que era comum na época.
  11. Ele era casado com a atriz Lenny Dark. No filme "Encarnação do Demônio" (2008), ela teve de filmar uma cena com mais de 3.000 baratas, e um desses insetos entrou dentro do ouvido da atriz, que precisou ser levada ao hospital.
  12. Antes da era das franquias, seu personagem virou filme, programa de TV, livros, literatura de cordel, linha de produtos cosméticos, xampus e até de cachaça.
  13. No filme "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967), ele usou 500 aranhas caranguejeiras no set.
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