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Por que 'Bacurau' ainda é relevante um ano após estreia; diretor comenta

Sônia Braga em cena do filme pernambucano "Bacurau", que ganhou o prêmio do juri em Cannes - Divulgação
Sônia Braga em cena do filme pernambucano "Bacurau", que ganhou o prêmio do juri em Cannes Imagem: Divulgação

Kelly Ribeiro

Colaboração para o UOL

29/08/2020 04h00

Fomos apresentados à cidade fictícia de Bacurau e seus moradores há exatamente um ano.

"Bacurau", filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, fez sua estreia no circuito comercial do país em 29 de agosto de 2019. Desde então, a pandemia do novo coronavírus fez mudarmos nossas rotinas de várias maneiras, principalmente quando falamos das salas de cinemas fechadas.

O que não mudou --e que parece não mudar tão cedo-- é a forma como o filme se mantém em evidência, em especial com as reviravoltas de 2020.

Quem nasce em Bacurau é o quê?

Bacurau poderia ser qualquer vilarejo do sertão brasileiro. Na trama, os habitantes se reúnem para lamentar a perda de sua matriarca, Dona Carmelita, que viveu até os 94 anos. Dias depois, eles descobrem que a comunidade sumiu do mapa e se tornam alvos de uma caçada mortal.

O filme chegou num momento muito dramático do Brasil e dos problemas históricos que o país teima em repetir. Muita gente fala que ele é futurista, mas, na verdade, é um filme de história, sobre os problemas que fazem parte da vida dos brasileiros. Kleber Mendonça Filho ao UOL

Os diretores Kleber Mendonça Filho (esq.) e Juliano Dornelles em Cannes - Stephane Mahe/Reuters - Stephane Mahe/Reuters
Os diretores Kleber Mendonça Filho (esq.) e Juliano Dornelles em Cannes
Imagem: Stephane Mahe/Reuters

Faz sentido, não é? "Bacurau tem várias metáforas e simoblogias que deixam a gente pensando sobre suas várias interpretações com a nossa realidade.

"Cada vez que ele passa num determinado momento e lugar ele gera reações muito específicas de quem está vendo o filme. Quando ele estreou tinha reações que batiam com as situações pelas quais o Brasil estava passando. Na [época da] exibição no YouTube já tinham outras, como a cloroquina", explicou o cineasta, em referência à transmissão do filme na plataforma online.

Por que o hype de "Bacurau" segue firme e forte?

Orçado em quase R$ 8 milhões, "Bacurau" vendeu até o início deste mês mais de 750 mil ingressos e arrecadou R$ 11 milhões, segundo o site Filme B, especializado em dados do mercado cinematográfico. E o número segue crescendo: o filme ainda está em cartaz em sessões especiais e cinemas drive-in.

O reconhecimento vai muito além dos números das bilheterias

Bacurau estreou sob altas expectativas, após vencer o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Com a chegada ao circuito nacional, o hype se concretizou. Foram 147,8 mil ingressos vendidos na primeira semana, também segundo informações da Filme B.

Foi um momento de plena satisfação e de uso perfeito da máquina de exibição cinematográfica com um filme brasileiro que as pessoas queriam ver. E aí um ano depois as salas estão fechadas. É muito incrível pensar nisso e é muito triste também pensar nisso um ano depois. É um momento difícil

Sem contar as reações orgânicas como memes, fantasias de Carnaval e fanarts inspirados pelos personagens peculiares, como Lunga (Silvero Pereira) e Domingas (Sônia Braga), atestando o fenômeno cultural que se tornou o terceiro longa do diretor de "Som ao Redor" e "Aquarius".

Personagem Dominga, de "Bacurau", é retratada por foliona na Charanga - Itaici Brunetti/UOL - Itaici Brunetti/UOL
Personagem Dominga, de "Bacurau", é retratada por foliona na Charanga
Imagem: Itaici Brunetti/UOL

Previsão do futuro ou uma doença crônica?

O filme tem essa coisa de espelho e eu acho que isso aparentemente o mantém sempre em evidência porque ele meio que rebate o que está acontecendo

Lembra-se da cena em que o prefeito manda jogar livros na porta da escola? O cineasta compara o trecho com as polêmicas sobre a taxação dos livros.

Quando você escreve uma obra de ficção, ainda mais científica, é inevitável que o presente vá parar na obra. Até porque a história do nosso Brasil, do que acontece ao nosso redor nos diz o tipo de coisa que a gente quer abordar. Isso tem muito a ver com o clima geral que foi parar no filme

Clichês do sertão nordestino? Dessa vez não

Bacurau é resultado de uma longa parceria entre os diretores que trabalham juntos desde 2004. A fagulha da dupla surgiu após "Recife Frio", de 2009. "Essa energia em torno do filme fez a gente pensar num projeto de longa-metragem que também utilizasse a ficção científica e o gênero, como o curta".

Fugir do estereótipo era uma meta para os diretores, ambos do Recife.

Acho que foi aí que começou a gênese da comunidade de Bacurau. Faríamos uma comunidade cheia de pessoas incríveis que a gente gostaria de colocar num filme. Essa foi a base desenvolvida ao longo de oito anos. Começamos a trabalhar quase que imediatamente nessa ideia e ele só foi filmado em 2018.

O dia em que Bacurau levou chuva para o sertão

A comunidade de Barra, no sertão do Rio Grande do Norte, a 24 km de Parelhas, foi a escolhida para ser a cidade fictícia. O local era exatamente a Bacurau que os diretores imaginavam para o filme, bonita e muito seca. Até a equipe de pré-produção dar início aos trabalhos.

Começou a chover como não chovia há sete anos na região. E durante a filmagem tivemos alguns problemas com excesso de chuva e a parte mais curiosa foi que nós fomos homenageados.

Cena do filme "Bacurau", dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - SBS Distribution - SBS Distribution
Imagem: SBS Distribution

Ele e a equipe receberam uma grande homenagem do padre da Paróquia de Parelhas, como forma de agradecimento por terem "levado a chuva" para a região. A mudança climática acabou sendo incorporada no roteiro.

Ver a paisagem mudar, de repente tudo verde, foi algo inesquecível e a gente decidiu colocar isso no filme. Impor essa imagem seca do sertão não é respeitoso com a região, ela pode ser seca e ela pode ser esplendorosamente verde e foi isso que a gente teve e é isso que está no filme.

Temos uma chance ainda no Oscar?

Lançado em março nos Estados Unidos, Kleber conta que Bacurau estava em cartaz quando os cinemas tiveram que fechar por conta da pandemia. O longa teve boa repercussão com a imprensa e tem uma marca alta no Rotten Tomatoes: 91%. Essa boa recepção levantou a questão: Temos chance no Oscar?

Kleber, o que nos diz?

Não sei o que vai acontecer. Vou fazer o que sempre faço: vou aonde o filme me levar. Se o filme for para o Oscar a gente vai trabalhar para o que for necessário, o que o filme pedir a gente vai fazer. Mas eu não quero também adiantar nada, pular a ordem natural das coisas. É um ano muito atípico.

Apesar de ter sido lançado por aqui e ter passado por vários festivais internacionais em 2019, o longa dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles só estreou comercialmente nos EUA no início de 2020, por isso ainda segue elegível ao prêmio da Academia.

Eu estou tranquilo porque eu e todo mundo que fez o filme a gente gosta muito do resultado final e a gente já se sente muito feliz com Bacurau pelo que ele é, pelo que ele significa para tanta gente.

Para aqueles que ainda não viram o filme, já sabem: Se for, vá na paz e de coração aberto.