Paulo Vieira: 'Eu não falar de pobreza é como Mano Brown cantar Bossa Nova'
Paulo Vieira ficou duplamente "quarentenado" este ano. Antes de entrar em retiro forçado por causa da pandemia do novo coronavírus, o apresentador do "Fora de Hora", da Globo, passou um tempo internado por conta de uma meningococcemia. Plenamente recuperado, mas em casa, o comediante conversou com o UOL Entrevista sobre seu tipo de humor, o início da carreira no stand-up e, claro, sobre política.
Quarentena
"Estava gravando um filme e era minha última diária. Acordei me sentindo muito mal e pedi para o meu empresário para ver se conseguia passar as minhas cenas para mais tarde, já que mina diária começava cedo e eu não tinha condições de gravar. Aí fui piorando, piorando.... O pessoal do filme veio até minha casa, eu me vesti aqui, maquiei em casa e gravei quase morrendo. Fui para o hospital e acabei recebendo esse diagnóstico de meningococcemia, que é a bactéria que causa a meningite espalhada pelo sangue.
E aí saio da quarentena da meningococcemia e veio para essa quarentena do mundo. Eu estava brincando com uma amigo que se eu pegar mais outra quarentena eu posso pedir música no "Fantástico". Depois da quarentena eu quero férias, quero ficar em casa, em paz, com o país andando".
Política
"Acho que o grande aprendizado que esse vírus vai deixar para o Brasil é sobre a importância de eleger representantes que entendam de Brasil e que entendam a necessidade do povo brasileiro. Acompanhando o grupo da minha família, eu noto que o grande aprendizado no final das contas vai ser 'eu não posso eleger um representante que não pense em mim', 'eu não posso escolher alguém que quando precisa escolher entre a minha vida e a vida da minha família escolha o dinheiro ou o empresariado'.
Eu sabia que o governo Bolsonaro seria um governo ruim. Sempre soube. Estava na cara, ele disse, ele não mentiu. Tudo o que ele disse que faria ele realmente fez. É um governo de várias ausências, de vários nadas. Eu sabia que seria um governo ruim, mas eu nunca pensei que fosse tão na cara, sabe.
Áudios na Quarentena
"Assim que começou a quarentena, comecei a receber reclamações no WhatsApp. 'Poxa, eu estou em casa sem fazer nada, podia gravar novos episódios'. Os fãs são meio doidos. Eu falei que não tinha condições de gravar, mas comecei a mandar áudios brincando com aquele universo da série, falei com os outros atores, comecei a montar roteiros para entreter o grupo de fãs. Começou a viralizar e aí comecei a fazer mais também. Esse poder de viralização dos áudios para mim, pelo menos, prova a comunicação que esses personagens têm com o povo, a força que eles têm".
Retrato da pobreza
"Na televisão a gente passou muito tempo seguindo aquela coisa: 'quem gosta de pobreza é intelectual', dizendo que o pobre não quer ver pobreza, que o pobre não quer se ver na tela. Então não quer ver preto, gordo, gente fora do padrão. Quer ver loiros, ricos, em suas mansões. Então eu acho que cada cada vez que acontece um fenômeno de viralizar uma coisa essencialmente do povo, acho que é o povo dando o recado de que gosta sim de se ver, de ser representado, de ser assistido, se ouvir, de ter a vida dele contada onde ele sempre viu a vida dos outros. É o que eu conheço e o que eu sei, eu sei falar da minha família, da minha mãe, da minha realidade, da minha infância.
Pedir para eu não falar de pobreza é a mesma coisa que pedir para o Mano Brown cantar Bossa Nova. O que eu tenho de mais mais pessoal é o que interessa às pessoas. É o que mais se comunica com todo mundo, todo mundo já passou por isso. O povo brasileiro passou por isso. As pessoas se identificam com a realidade. Na verdade eu não entendi desde cedo que meu filão era pobreza, entendi desde cedo que meu filão era a sinceridade
O começo
"Eu fiquei mais conhecido no meio do stand-up porque eu tinha uma estratégia. Eu estava no Tocantins, perdido, mas eu também tinha a oportunidade de treinar e ficar bom sem ninguém me ver. Eu podia ser ruim, ruim, ruim, até ir melhorando. O que me faria sair na frente das pessoas que começam nos grandes centros e o mercado de stand-up acompanha esse processo. Quando fiquei bom, São Paulo, o Rio de Janeiro e o Brasil me viram mais maduro.
Eu fazia show em qualquer lugar. Fiz show em aniversário, fiz muitos shows no interior, já me apresentei em cima de caçamba de caminhão e em inauguração de fazenda, fiz show em empresas que vendiam semente, vendiam milho.
Então eu e meus amigos da comédia começamos a chamar o pessoal de São Paulo para o Tocantins, assim eles veriam nosso show e falariam da gente em São Paulo. Foi assim que aconteceu. Até que eu fui inscrito pelo Bruno, meu companheiro de stand-up, no Campeonato Brasileiro de Stand-Up Comedy. Com ele, eu fui para São Paulo Pela primeira vez, para participar do Risadaria, e minha carreira aconteceu a partir dali".
Sobre fazer humor
Acho que rir é um aprendizado. Foi a maneira mais fácil que eu encontrei de sobreviver. Você acorda todos os dias e tem duas opções: chorar ou rir. Tem dias que a gente chora, normal, mas se você pode escolher? eu escolhi a maneira menos dolorosa de passar por isso.
Eu acho também que nem tudo é só engraçado, nem tudo é só triste. Eu nunca disse que era engraçado. Eu fui fazendo e as pessoas foram rindo. Mas não necessariamente a comédia é o meu objetivo. Talvez seja explorar mais sobre o ser humano".
A mãe de Paulo Vieira
"A minha mãe é muito engraçada, mas ela não necessariamente tem esse humor. Esse humor vem muito do meu pai. Essa observação sobre a minha mãe, essa coisa do 'Olha lá ela olha lá. Não pode nem abrir a geladeira para ver se ela não passa um pano'. Essa observação vem muito do meu pai, minha família é muito engraçada, a gente ri muito, meu irmão tem um humor muito ácido. Então tudo o que eu faço é reflexo deles".
Limites do humor
Não dá para fazer piada com tudo em todos os lugares. Não acho que o comediante tenha essa carta branca para sair por aí fazendo piadas sobre tudo. Mas ao mesmo tempo, eu sou um defensor da liberdade. Desde que não seja crime, luto para que as pessoas falem e se expressem como bem entenderem para quem queira consumir aquele tipo de arte
Internet x televisão
"A internet deu um empurrão na televisão. E um empurrão também político, nas pautas. Essa coisa de as pessoas terem voz na internet... as transsexuais, por exemplo, poderem gritar que uma esquete que as ofende, isso foi um empurrão para a modernização da televisão.
E eu acho que teve um segundo empurrão: a renovação de elenco, de direção? quando você está lá, você puxa semelhantes. Para eu estar onde eu estou, eu precisei de um Lázaro Ramos para falar, encher o saco, aproveitar o espaço que ele tinha e onde ele poderia divulgar as coisas dele para falar sobre racismo, sobre a necessidade de ter mais negros na televisão. Para eu estar onde eu estou, eu precisei que o "Tá No Ar" fizesse uma esquete falando sobre a branquitude na TV Globo e a internet criticasse o "Tá No Ar" porque o programa não tinha negros no elenco. O "Tá No Ar" precisou se renovar, colocar mais negros no elenco, mais negros escrevendo.
Para eu estar aqui, muita gente na internet precisou deixar de postar foto de biquíni para falar 'a Globo é branca', 'a Globo precisa de mais negros'. Eu ocupo um lugar hoje que não é só meu. Foi conquistado com muita militância. Esse lugar não é só meu, é o lugar de muita gente. Eu não cheguei aqui sozinho com o meu talento. Cheguei aqui com meu talento mais a militância da galera que exigiu pessoas como eu na televisão.
Eu não posso também simplesmente me isentar da minha responsabilidade em falar, em dizer que precisa de mais gente produzindo, escrevendo, gerenciando e pensando televisão. Para que ela caminhe para um futuro que seja pelo menos parecido com o que é a cara do povo brasileiro.
Começo na TV
Eu fiz todos os concursos que existiam no Brasil. Todos. Fiz uma coisa da Ana Hickmann, na época do "Tudo é Possível", ganhei. Eu fiz o Prêmio Multishow de Humor. Ganhei. Participei o "Quem Chega Lá", no Faustão, e ganhei o Faustão e aí ganhei o Grande Prêmio do Humor Brasileiro no Risadaria. Foi aí que a Globo me contratou pela primeira vez, em 2015. Fiquei lá um ano, um ano na geladeira. Fizeram isso só para me segurar.
Eu me ferrei muito porque eu tinha me mudado para o Rio, morava eu e uma amiga, Ariana, que estava em dúvida por ser publicitária e comediante, e ela não estava conseguindo fazer as duas coisas. Ela queria deixar de ser comediante, mas eu falei para ela não desistir, largar a publicidade porque eu era global e poderia pagar as contas do apartamento. Ariana "trouxona" saiu da publicidade e eu saí da Globo, vendi o carro que eu tinha ganhado no programa do Faustão para pagar as contas, mas chegou um momento que não tinha mais o que fazer. Resumindo: fui despejado.
No dia em que fui despejado, fiz um teste para o programa do Porchat. Foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida. Eu aprendi muito, aprendi com o Fábio, aprendi com a Record, aprendi como é uma televisão. O Fábio é a pessoa mais generosa que eu conheci na vida, ele não tem medo de talento. Se você faz uma coisa boa, engraçada, ele te incentiva a fazer mais.
Ele filma, ele mostra e fala "olha como isso é bom". Quando todo mundo queria me tirar do programa, a crítica falava mal, que eu era desajeitado. E eu realmente sou gordo, grande, preto, desajeitado. Num branco loiro, isso é uma charme, num preto, ele não serve para isso. Aí quando todo mundo queria me tirar do programa, o Fábio me defendeu, foi pedindo mais espaço para mim.
A gente tinha um diretor que cortava tudo o que eu falava, não me curtia, não gostava de mim. E aí tudo o que eu falava ele me cortava, desligava o meu microfone, foi um início super difícil. E o Fábio lutando por mais espaço para mim. Quando eu fiz o "Emergente Como a Gente", que foi o quadro de mais sucesso do programa? eu propunha muitos quadros para o programa, mas o diretor achava tudo ruim. Aí eu me aproveitei de uma brecha, era uma fase em que o programa estava desorganizado, e eu estava em todos os grupos. Estava no grupo da produção, estava no grupo do roteiro, no grupo geral... aí eu vi que a produção estava esperando um roteiro, mas vi que aquele roteiro tinha caído no outro grupo.
Aí eu mandei um roteiro e gravei meio clandestinamente, dei esse balão na produção, falei com a equipe, aprovei coisa que não era da minha capacidade aprovar, fui na edição, e não era nem para eu estar lá. Não falei com o diretor, porque ele ia falar que estava ruim, então fui lá no Fábio, peguei a mãozinha dele. Mostrei, ele riu muito e disse que queria aquilo toda semana. Eu consegui fazer o 'Emergente Como a Gente' graças a trambique e falcatrua. Péssimo exemplo [risos].
Relação com a Globo
"Eu tinha muito medo, né. Meu pai fala muito que 'cachorro mordido por cobra tem medo de mangueira'. Quando a Globo me chamou para conversar, pensei logo em mais um ano de geladeira, fiquei meio cabreiro. Tanto que ainda tentei ficar na Record por mais um tempo, até que me disseram que não me dariam um programa porque eu não tinha perfil de apresentador. Vi que era hora de sair. Eu acredito muito nisso: só você pode dizer quem você e onde você pode chegar. Se essa empresa não me deixa ser do tamanho que eu quero ser, então eu vou embora. Quando eu estava para assinar com a Globo, eu fui para uma pousada no Nordeste, bem global, fui para o Nordeste descansar e dar uma pensada.
E nessa mesma época a Netflix estava interessada em mim. Foi um tempo muito feliz para mim porque foi quando eu vi o meu trabalho tendo frutos, ecoando pelo mercado. Porque eu ficava ali na Record pensando 'sou só um ajudante do programa do Porchat', às vezes acreditando no que as pessoas me falavam, e quando acabou o programa veio a Globo pedindo para eu parar para assinar. Aí veio a Netflix querendo o projeto que tantas vezes foi rejeitado? Foi um momento de autoestima para mim.
E aí a Netflix chegou a dobrar a proposta financeira da Globo, mas eu quis ir para a Globo. Isso pode até ser uma coisa burra, mas eu não ligo muito para dinheiro. Eu sempre me pautei pela minha cabeça, pelo meu coração. E eu quero me comunicar com a massa. Não era o meu momento de ir para a Netflix e me nichar. Quem da minha família tem streaming? Ninguém. E eu queria que as pessoas à minha volta me assistissem.
Foi uma decisão realmente para ganhar corpo, ser conhecido. Eu quero ser conhecido. Quero falar com o povo. Quero ser um comunicador de massa. E eu optei pelo que a Globo pode me dar, que é chegar até o meu público.
Vida de influencer
Acho que a internet, para você ser uma grande estrela, ela e ela te exige alguns silêncios para você chegar lá. Quando você está lá você pode falar. Mas antes acho que ela exige alguns silêncios e eu não estaria disposto a fazer. Eu perco muito seguidor. Toda vez que eu demonstro ser quem eu sou, eu perco seguidor.
Eu estava conversando com um consultor de carreira que me disse que eu precisava ver minha carreira como uma empresa. Mas empresas não têm coração. Eu não quero ser empresa, quero ser artista. Para ser uma empresa, vou fazer um CNPJ, não me chamaria Paulo Vieira, chamaria Paul Company.
Ser um artista de massa, na verdade, exige um pouco disso. Acho que talvez essa seja a grande briga mental, espiritual e estratégica da minha carreira seja essa. Equilibrar o artista de massa que eu quero e posso ser e meu ímpeto e necessidade de ser quem eu sou, ter opinião, posicionamento político. Por isso eu tento ser muito bom nisso para meu outro lado ser mais palatável para os dois públicos. Se bem que sei lá se eu quero ser mais palatável? eu estou aqui fazendo análise na entrevista.
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