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Prisões, drogas e abelhas mágicas: as incríveis histórias dos Novos Baianos

Os Novos Baianos, quando decidiram cantar juntos novamente: Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Baby do Brasil - Mirian Fichtner/Folhapress
Os Novos Baianos, quando decidiram cantar juntos novamente: Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Baby do Brasil Imagem: Mirian Fichtner/Folhapress

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

15/04/2020 10h00

A morte de Moraes Moreira, na segunda-feira (13), aos 72 anos, pode ter colocado um ponto final na história dos Novos Baianos. O grupo driblou algumas rusgas do passado para uma turnê em 2016 e conversava sobre um disco de inéditas para este ano. Seria o primeiro trabalho em estúdio com a formação original desde 1974, quando Moraes decidiu seguir carreira solo e deixar a vida em comunidade com os integrantes.

As histórias do grupo naquela década, no entanto, ainda despertam o interesse de fãs e muitas ganharam certa aura folclórica. São muitos os relatos de experimentos com drogas, da vida em comunidades, de momentos mágicos que inspiraram canções e até de prisões. Moraes conseguiu escapar de muitas delas —quase todas por posse de maconha—; já Galvão, seu principal parceiro nas canções do grupo, chegou a ir em cana sete vezes.

Várias dessas histórias são contadas pelo poeta e compositor no livro "Anos 70", relançado em 2014 como "Novos Baianos: a história do grupo que mudou a MPB" pela editora Lazuli. Para celebrar o anarquismo e a filosofia hippie desse grupo que revolucionou a música brasileira, o UOL selecionou alguns "causos" contados por Galvão.

Presos, nus e carecas

Uma das detenções mais sérias se deu em Salvador, após o grupo atrasar as diárias de um hotel. Moraes escapou, graças à visita de Paulinho Boca de Cantor a uma vidente, que teria antecipado o episódio dois dias antes. "Só Moraes teve a boa sorte de ser avisado: se pirulitou para sua terra natal, Ituaçu", conta Galvão. Os outros integrantes —incluindo Pepeu Gomes, à época com 16 anos— não tiveram a mesma sorte. Galvão relata ameaças físicas que o grupo sofreu do delegado.

"Baby não foi obrigada a se despir, mas estava na cela em frente à nossa, e nós completamente pelados. A cela dela estava cheia de prostitutas do Baixo Maciel. Umas lésbicas, portando giletes, quiseram gracinha com ela, mas Baby se impôs: "Não é meu ramo e vocês contam comigo: eu sou mulher 70, não tenho medo de gilete. Vamos ficar numa boa. Quando Baby foi tomar um banho, vieram quase todos os canas, querendo vê-la pelada. Baby deu um esporro neles e tomou banho vestida. (...)
Lá dentro, nós não sabíamos nada do que se passava. Fomos levados, um por um, para o corredor e algemados. Cortaram nossos cabelos. Enquanto cortavam o meu, eu xingava a mãe deles e os chamava de covardes."

Na saída, a história foi para a capa dos jornais.

"Como não éramos bobos, dissemos que fomos presos sem mandado; como éramos artistas, a notícia teria repercussão nacional. Os olhos dos jornalistas brilharam e ganhamos página inteira com fotos, manchete e reportagem.

Como Baby não teve a cabeça pelada, aproveitei os cabelos dela, colando os nossos rostos para uma fotografia onde eu aparecia cabeludo. Esta foto dava a "manchete". Não fizemos entrevista; em lugar disso escrevi, na qualidade de poeta do grupo, uma carta a Deus, onde dizia que, se Deus existisse, não poderia deixar um torturador como delegado na terra do Senhor do Bonfim."

Carruagem e cama aérea

A vida em comunidade começou de fato quando eles chegaram ao Rio de Janeiro e se instalaram em um apartamento da Conde de Irajá, em Botafogo, um QG decorado de forma nada ortodoxa.

"Isso por causa dos quartos, decorados na fase lisérgica em que vivíamos. Moraes e Marilhona, a sua companheira, viviam em um quarto com uma cama em forma de carruagem. Eu coloquei uma cobertura de pano por baixo do teto do quarto, o que dava a ideia de um circo. Como eu dormia dentro de um guarda-roupa embutido, que tinha colchão de tatame e uma cortina de veludo, tudo aquilo parecia compor um estilo teatro. No fundo do guarda-roupa, projetávamos, sobre um lençol, filmes em 16 mm para a plateia que se acomodava no chão do quarto. Baby e Pepeu moravam numa cama aérea, pendurada no teto da varanda. Baby forrou a casa dela toda de plástico: usava um fecho ecler para se proteger da chuva e abria todas as manhãs de sol para receber as vitaminas."

Pocket show e papo-cabeça com militares

Com a ideia de gravar um filme com os integrantes, Galvão estava atrás de uma mansão no Rio como cenário. Acabaram todos parando na casa do Dr. Noronha, um dos responsáveis pela construção da ponte Rio-Niterói. Mas ninguém esperava encontrar lá seis generais. Os Novos Baianos não se fizeram de rogados.

"Acendi um baseado, passei para Moraes, que deu dois paus, e pegou o violão. Ele cantou 'Colégio de Aplicação' e em seguida tocou outra com Baby --que cantou e arrasou com tanto balanço, que os militares até deram uma balançadinha com pés e cabeças. A inédita foi 'Tinindo trincando'. Um dos militares voltou a argumentar:
- Vocês não são subversivos, mas apenas viciados. Tornaram-se contraventores porque buscam drogas, e acabam se envolvendo de alguma forma com o tráfico. Esse, sim, é perigoso, ganha dinheiro com o crime. Não sabemos onde isso vai dar.
Outro general mostrou o seu lado de pesquisador musical da MPB:
- Essa música de vocês é muito interessante pela economia de palavras. Tem uma influência das músicas "Bim Bom" de João Gilberto, lançada no início dos anos 1960, e de "Bat-Macumba" de Gilberto Gil, do período tropicalista. Também vocês são baianos e buscam a linha evolutiva."
Vida em comunidade

O grupo deixou o apartamento para se instalar em um sítio, em Jacarepaguá, no povoado Boca do Mato. Com mais espaço e ar puro, Galvão conta como foi feita a divisão de tarefas e espaços.

"Na parte térrea, ficavam Moraes e Marília com seus filhotes Ciça e Davi. Sem esquecer que fazia parte da família o seu violão Di Giorgio. No primeiro andar, os solteiros (ou a maioria deles) se instalavam com casas-cabanas de pano. Baby residia na última casa do lado direito, junto a uma goiabeira e uma das laranjeiras que compunham o pomar. Como vivíamos em comunidade, fomos obrigados a promover uma administração que conseguisse manter as pessoas juntas, sem que elas se sentissem agredidas por normas, proibições e ordens. É claro que devemos ter errado muito, mas também ganhamos em criatividade e comunicação. Começou a engatinhar uma espécie de descentralização, tanto da administração, quanto da liderança. Assim, a guarda do dinheiro se dividia entre nós. (...)

A reserva para solucionar imprevistos relacionados com as crianças, por exemplo, ficava a cargo das mulheres; já a parcela destinada ao futebol ficava com Zé Baixinho; a parte de cordas e instrumentos musicais era da responsabilidade de Moraes e Pepeu. Quando um músico tinha algum problema, os que dirigiam essa área tomavam as providências necessárias.

Ali no sítio eu e Moraes compusemos músicas debaixo das árvores e nosso técnico de som, o mineiro de Salomão, montou um estúdio onde ensaiávamos diariamente."

"Não uso drogas, sou poeta"

No final de 1971, com o grupo já no sítio da Boca do Mato, o cerco das polícias se fechou.

"Elas tomaram conhecimento de que o grupo usava drogas e tinha grande influência sobre a juventude. De vez em quando, o sítio era invadido, mas o pessoal tinha boa sorte: a malandragem da meninada dispensava tudo a tempo e nada era encontrado.

A hora fatídica aconteceu quando eu e o engenheiro Felipe Guimarães, que morava na comunidade e gerenciava comercialmente o grupo, vínhamos na estrada da Floresta da Tijuca: depois de participar de uma festa regada à droga, fomos flagrados com maconha. Fiquei oito dias junto de bandidos "de primeira linha"

(...)

"No dia do julgamento, acordei cedo e meditei. Em seguida, vieram duas letras de músicas: 'Cosme e Damião' e 'Sorrir e cantar como Bahia'. Por via das dúvidas, passei-as para o meu advogado, para que as levasse para Moraes. As galerias do fórum estavam cheias de amigos, que me viram passar algemado. Entrei na quarta vara cível confiante. O juiz, Dr. Hugo, como nos filmes de tribunal, tinha a postura e o ar de severidade, cheio de cerimônia. Fui absolvido graças à música 'Acabou Chorare'. O juiz fez a primeira pergunta:
- Luiz Dias Galvão, você fuma maconha?
Eu estava preparado pra tudo, menos para aquela pergunta. A intuição falou por mim:
- Não bebo, não fumo e não jogo. Sou poeta desde menino.
Ele contra-atacou: "- Você é poeta? Então, mostre um poema seu.
Para ganhá-lo e ganhar tempo, disse-lhe:
- Sou deísta e a minha poesia vem do alto: sou apenas um veículo.
Falei assim querendo impressioná-lo, mas eu acreditava em Deus com todas as letras. Num átimo, passaram pela minha cabeça várias letras de músicas de minha autoria. Mas percebi que o magistrado poderia interpretar "sujeira" nelas, a começar por "Preta Pretinha." Por exemplo, ele poderia dizer:
- Enquanto corria a barca? De que você estava correndo?
Encontrei em "Acabou Chorare" a solução, já que a fizera para João Gilberto, porque uma abelha sentara na minha mão numa madrugada, lá no apartamento de cobertura, no meu quarto e, portanto, só poderia ser limpeza. Qual o quê! No final da letra, ele encontrou o verso "Vi o sapo na lagoa, entrei nessa que é boa."
E o Dr. Hugo, implacável, questionou:
- Mas você não entrou nessa maconha que é boa?
- Sou poeta desde menino.
- O senhor está absolvido. Pode ir embora: vá com Deus e sua poesia."

Abelha mágica

O clássico "Acabou Chorare", musicado e interpretado por Moraes, é uma colcha de inspirações, incluindo a história da abelha mágica, contada por Galvão em juízo.

"Curiosamente, ela veio em meu socorro. Num movimento automático, estendi minha mão direita e ela veio pousar bem no meio da minha palma. A alegria que circulou em meu coração foi algo inenarrável"

Mais tarde, no apartamento de um amigo, Galvão teve certeza que a mesma abelha voltou a posar na sua mão.

"Falei:
- Essa abelha já esteve comigo hoje lá em Botafogo.
As pessoas presentes espantaram-se achando que eu estava doido. Por acreditar nessa versão, fiz a letra da música "Acabou Chorare", na qual consegui uma linguagem poética angelical. (...)
Telefonei para João Gilberto contando que estava fazendo uma letra sobre essa relação com a abelha. "Puxa, Luizinho! Eu estava falando com o poeta Capinan e ele lembrava que a abelha beija a flor e faz o mel, e eu gostei e completei: "E ainda faz zun-zun."
Perguntei a João:
- Posso usar isso?
E ele aprovou e disse: "Deve!" (....)

Escrevi a letra e mostrei a Moraes, que colocou a música na hora."

A saída de Moraes

Moraes Moreira nunca escondeu que a vida em comunidade com os Novos Baianos foi um dos fatores que o fizeram deixar o grupo.

"Quando Moraes saiu, a realidade era outra. Tínhamos vivido anos em comunidade, formado uma nova família através da música, sofrido situações lado a lado —tudo isso deixou a separação mais dolorida e traumática. Além disso, éramos, Moraes e eu, até aquele ponto da carreira do grupo, os responsáveis pelas composições: eu, como letrista, e ele, como autor da melodia e harmonia. Em algumas músicas, como "Besta é Tu", Pepeu participou, dando um molho a mais. Aquela saída de Baby ficou parecendo brincadeira diante da saída de Moraes.

O clima ficara estranho assim de uma hora para outra, nos pegou de surpresa. Comparo com a situação de uma família baiana em que o filho (na adolescência) começa a namorar uma mulher mais velha e passa a dormir fora, desobedecendo às leis da casa. Moraes, para não magoar seus colegas de grupo, dormia no sítio "dia sim, dia não." Ninguém tratava do assunto diretamente. Eu, que já morara com ele no mesmo quarto na pensão de Dona Maritó, mudei minha cama para o seu quarto na tentativa de minimizar seus problemas ou, pelo menos, de evitar a solidão. Eu, ciente da gravidade da situação, visitava o casal, inteirando-me de tudo e tentando dissuadi-lo da ideia de nos abandonar, mas a decisão dele era firme.

Uma noite, no sítio, Moraes me chamou no canto e disse: - Faça a seguinte proposta aos meninos: se nós alugarmos um apartamento para eu morar com Marília, eu garanto vir ensaiar diariamente e continuo no Novos Baianos. Levei a proposta ao grupo e, em reunião democrática, ela não foi aceita. Alguns temiam que eles mesmos também viessem, no futuro, a fazer exigências semelhantes, o que acabaria com a comunidade. Falei para Moraes da recusa de sua proposta. Ele me chamou para sair do grupo com ele. Continuaríamos fazendo a parceria, ele cantaria as músicas e venceríamos, porque, no início, na pensão de Dona Maritó, éramos só nós dois. A proposta chegou a me balançar, mas o Novos Baianos falou mais alto. Agradeci o convite e desejei sorte ao parceiro: naquele momento, não tive dúvidas de sua determinação. Foi um baque para nós."

Blitz em 1997

Quando o grupo se reuniu pela primeira vez após o término, Galvão já estava, como dizem, "careta". Mas, na volta de um show, dentro do carro com Moraes, Paulinho e Baby, um cigarrinho dos tempos áureos voltou a ser aceso.

"Não demorou muito, um camburão da polícia apareceu de repente e deu sinal para que parássemos. Moraes, que ia no volante, acelerou. Paulinho falou: "Pode parar que eu já engoli o baseado". Moraes continuou, sem querer estacionar, e falou: "Não! Antes temos que dispensar essa mutuca aqui". Paulinho discretamente jogou-a pela janela com relativa força, deixando o flagrante longe da busca da polícia, que usou até lanternas, mas, graças a Deus, sem sucesso. (...)

A polícia cheirava os dedos dos outros Novos Baianos. E afirmavam que ali tinha coisa, que eles iriam encontrar o flagrante, pois o cheiro nos dedos mostrava que os meus amigos estavam fumando baseado. Pelo menos uma bagana foi encontrada e o chefe disse que todo mundo iria em cana, sairia no jornal, era ibope na certa. Moraes começou a defesa do grupo argumentando que sabia do problema dos policiais, ganhando pouco e correndo alto risco se expondo ao perseguir os bandidos. Mostrou-se solidário com a greve da polícia que acontecera recentemente, pegou um maço de grana e botou na mão do chefe dizendo: "Aceite isso, por favor, é um presente do Novos Baianos". Os caras arregalaram os olhos diante do tanto de dinheiro e o chefe agradeceu: "É, Moraes, você é legal e está por dentro da nossa luta, vocês são sensíveis, nós gostamos das músicas de vocês e o flagrante foi pequeno. Mas não acendam mais aqui na orla que é sujeira".

Filhos dos novos baianos

"O bom de todas essas histórias dos filhos de Novos Baianos é que, apesar de terem nascido de uma geração de pais envolvida com drogas, a moçada é sadia de mente e gosta de saber como foi a vida no sítio, em comunidade. Não há nenhum tipo de preconceito que eu tenha notado na relação que tive com a maioria dos filhos dos componentes do grupo. Gostam de humor, estudam os cartunistas e riem à toa. Moraes me contou que Davi reuniu um grupo com os filhos do Novos Baianos e fez um som lá no sítio. Moraes não se conteve e telefonou para Baby dizendo: 'Enquanto o velho grupo do Novos Baianos brinca de briguinhas, nossos filhos estão unidos'."